Quero partilhar o debate que estou a ter com o Miguel Vale de Almeida sobre um tema que tem atravessado a blogayesfera, o do casamento.
Quem quiser seguir o debate até à origem, clique no título deste post, tem um link para o blog do Miguel.
Em primeiro lugar quero reconhecer que a publicação que escolhi para esgrimir os meus argumentos não foi a melhor, pois transportei "para fora" um debate interno ao movimento de maneira algo desastrada, coisa que costumo eu próprio desincentivar.
Por outro lado quero queixar-me da maldade (:)de me obrigares de novo a ler o meu texto. Fico sempre horrorizado quando releio os meus escritos e nunca gosto...
Anyway, não me parece que tenhamos posições assim tão diferentes quanto à reivindicação do casamento, mas passo a esclarecer as alegadas contradições.
Não era intenção do meu texto lançar uma desconfiança estratégica sobre a reivindicação do casamento. Como lá digo, é agora, sob influência dos acontecimentos em Espanha, que essa luta tem que se travar, e na sequência dos desenvolvimentos legais que temos tido por cá é esse o seguimento lógico. A agenda legal do movimento LGBT português está quase completa no que toca a leis discriminatórias, faltando quase apenas o último reduto dos direitos familiares: direito ao casamento, com todos os direitos associados.
Aquilo que eu tentei defender foi a) a necessidade de ver o fenómeno espanhol sem ilusões demasiadas e cenários cor de rosa. É extremamente interessante o que se passa em Espanha, mas também, naturalmente contraditório. E inexportável. b)a necessidade, de há muito, mas sobretudo quando se lança uma reivindicação estratégica, de questionar as dificuldades históricas do nosso movimento na comunicação com a(s) comunidade(s) que este pretende representar ou pelo menos defender, e de agir em conformidade; c) a necessidade de debater como se avança para a reivindicação do casamento: se apenas como reivindicação de igualdade ou se de uma perspectiva crítica (anti-sistémica e expressa) do patriarcado e dos valores familiares que numa sociedade já tão diversa continuam a funcionar com referência ideológica.
Não me parece que falar de opiniões "integracionistas" e "transformadoras" seja um anacronismo, embora reconheça que é redutor se tentarmos caracterizar as organizações existentes hoje. É certo que "reivindicações aparentemente integracionistas - como o direito ao casamento - podem resultar radicais; assim como certas reivindicações "radicais" podem ser contraproducentes, quando não esvaziadas de conteúdo". Mas também é certo que o sistema económico e político actual, sobretudo em tempos de globalização de valores e de mercados, exerce uma pressão integradora sobre as comunidades LGBT, no sentido de eliminar o subversividade óbvia que tem a homossexualidade num contexto social e mental que continua maioritariamente homofóbico. Se no universo comercial isso não é intencional - a despolitização e a sociedade de consumo são um problema geral e não apenas homossexual -, nos países onde tem havido evolução legal, os Estados, que já não nos podem esconder, preferem hoje aceitar certo nível de reivindicações e modelar-nos de forma a que a homossexualidade se torne neutra e conforme aos valores dominantes. Neste contexto, ela pode ser tolerada, mas o problema é que este contexto em que (alguns) queremos "casar e viver felizes (não direi para sempre)" é o mesmo que reproduz continuamente a homofobia.
Tudo isto para dizer que é verdade que o acesso dos casais do mesmo sexo ao casamento pode vir a transformar irreversivelmente a instituição do casamento e contribuir para desmembrar a homofobia social. Mas sem discurso crítico, pode também vir a reforçar modelos familiares que fazem parte do esquema de reprodução da discriminação (não falta conservadorismo a grande parte da comunidade lgbt).
Ora, que as pessoas, mesmo as conservadoras que queiram reproduzir os modelos heterossexistas em relações do mesmo sexo, devem ter o direito de escolher não casar ou casar, estamos de acordo, e juntos nessa campanha. Eu, pessoalmente, quero reivindicar o direito a escolher não casar, e para isso tem que me ser reconhecida a possibilidade de o fazer.
Mas o reparo deve ser feito: quanto mais formas de relacionamento e reconhecimento familiar, melhor, para homos e heteros, e quanto menos cópia dos modelos existentes, melhor.
Por outro lado, a minha preocupação com um eventual esvaziamento da agenda lgbt não tem a ver com um eventual momento de conquista do casamento. É mais geral: tem sim a ver com uma estratégia que privilegie apenas as reivindicações legais. Lembro que sempre que obtivémos uma, o discurso que se reforça é o de que já não há discriminação. E quando obtivermos todas? (já estivemos mais longe, embora o contexto homofóbico não tenha perdido grande força).
É evidente que nenhum movimento pode actuar apenas pela "negativa", em "reacção" a situações de discriminação. Mas a estratégia fundamental do movimento que hoje integro - as Panteras Rosa - é precisamente revelar uma e outra vez, e outra ainda, casos de homofobia concretos, os tais em que reconheces haver um potencial - visilizar a homofobia destrói os discursos de manter o tema na vida privada e aniquila as novas homofobias ligth do género "sou pela igualdade de direitos mas... (em que o mas costuma ser a adopção). Mais, confronta a sociedade com uma homofobia latente que já não se pode negar, e portanto abre caminho para outras agendas. E mais urgente ainda: desnuda a homofobia internalizada que tão responsável é pelas dificuldades de comunicação da comunidade com o associativismo, e retira-lhe as bases. Para mim, esta é uma estratégia com o seu tempo delimitado, mas extremamente actual.
Concordo que o movimento enquanto tal não pode privilegiar esta questão como central, mas não deixo de defender que na situação portuguesa actual é absolutamente necessário que alguém o faça a par da outra agenda (a do casamento, por exemplo), e que essa vertente não deixe de estar presente na análise global do movimento e no discurso que este produz.
Finalmente, não é verdade que em Espanha as posições de cautela venham apenas dos sectores "minoritários, mais radicais, e com uma suspeita intelectual e teórica em relação ao casamento em si (homo ou hetero)", esses grupos anacrónicos que não evoluíram depois dos anos 70 e que eu também não compreendo. Os temores que ouvi em Espanha - e fiquei atónito - vêm precisamente de dirigentes da COGAM e organizações com esta, precisamente dos mais empenhados na conquista do casamento. Mantenho a ideia de que em grande medida a força do movimento em Espanha é um balão de ar quando visto de perto, e é isso mesmo que eles reconhecem.
Sei que "o mercado pode tanto ser "local" de alienação como "local" de emancipação". Mas também sei que hoje ele tem tendência para se substituir grandemente à política e ao associativismo, e para reproduzir modelos discriminatórios como modelos gays "mainstream". Até o desejo nos é formatado pelo mercado... isso é mau, embora seja obviamente bom que na sociedade de consumo em que vivemos, a população lgbt não seja excluída de uma quota-parte de produtos e serviços seus.
Miguel, desculpa o tamanho do comentário, mas isto empolga-me... vou postá-lo no blog das panteras com link para aqui.
um abraço
sérgio