Proibição da doação de sangue a dadores homossexuais masculinos: uma discriminação inaceitável.
O Instituto Português do Sangue (IPS), organismo público dependente do Ministério da Saúde, insiste há anos, apesar da argumentação em contrário das associações LGBT, na política discriminatória e isenta de critério médico que consiste em interditar a homossexuais masculinos a possibilidade de doação de sangue.
De facto, as normas estipuladas pelo IPS vão neste sentido, levando a que Centros de Recolha de Sangue e hospitais apresentem aos dadores formulários que incluem entre as interdições “Práticas Sexuais com pessoas do mesmo sexo (dador masculino)”.
Ao contrário de outros critérios presentes, como “práticas sexuais com múltiplos parceiros nos últimos 6 meses”, a homossexualidade não pode ser considerada, em si, como uma prática de risco. A existência de tal restrição transmite erradamente uma valorização discriminatória das práticas homossexuais masculinas – já bem patente em declarações de 1999 do então - e até há bem pouco tempo, presidente do IPS José D’Almeida Gonçalves, segundo as quais “pelo menos 50% dos homossexuais são promíscuos” - e promove a ideia falsa de que as mesmas práticas sexuais de risco possam ser menos arriscadas se praticadas por casais heterossexuais.
Porque falamos em discriminação?
No questionário que o IPS entrega aos dadores, a pergunta “sendo homem, manteve relações sexuais com outros homens?” visa impedir todo e qualquer homem que tenha tido contacto homossexual de doar sangue. Isto implica que todo e qualquer homossexual é impedido de o fazer - há portanto todo um grupo na sociedade que não pode ser dador.
Como sabemos pela ciência médica pelo menos desde o advento da crise do HIV nos anos 80, as infecções sexualmente transmissíveis, HIV e outras, necessitam de uma via de infecção, neste caso, contacto sexual. Ora sabemos que a maioria das infecções se evita com o uso do preservativo, e que isto é valido para todo o tipo de contacto sexual.
A triagem do sangue pelo IPS, devia, assim, concentrar-se mais em questionar os potenciais dadores sobre o uso de COMPORTAMENTOS sexuais de risco ou de práticas de sexo mais seguras, precaução válida tanto para homossexuais como para heterossexuais, sendo então inexplicável a existência de uma triagem diferente para uns e para outros.
A não ser que os critérios do IPS correspondam ao preconceito de que os homossexuais são geneticamente promíscuos; mais promíscuos do que os heterossexuais; de que além de promíscuos, são geneticamente estúpidos, pois recusam-se a usar preservativo nas suas relações; que não há homossexuais fiéis, com relações estáveis e que se testem para o HIV com frequência, lá está, porque são geneticamente estúpidos!
A qualidade do sangue está mesmo a ser protegida?
Foi o bastonário da Ordem dos Médicos, doutor Pedro Nunes, quem, relativamente ao sangue, declarou em 2006: "tal como a pergunta está formulada, o critério do comportamento de risco - sexo anal - está a filtrar mais cidadãos homossexuais e menos outros cidadãos que também deveriam ser filtrados por essa pergunta, constituindo na prática uma discriminação eticamente inaceitável, que terá mais a ver com a tranquilidade psicológica de quem está no processo".
O questionário do IPS coloca a questão na mera orientação sexual do dador, e assim prescinde de inquirir mais detalhadamente sobre práticas de risco concretas como o sexo anal, praticado tanto por homossexuais como por heterossexuais. Ora, nenhuma prática sexual de risco pode realmente ser atribuída exclusivamente aos homossexuais ou a todos os homossexuais.
O IPS incentiva assim à mentira - muitos homossexuais dão sangue ocultando a sua orientação sexual e respectivas práticas sexuais - e em nada contribui (pelo contrário) quer para o esclarecimento dos potenciais dadores, quer para a real protecção da qualidade do sangue recolhido.
Acrescente-se a diversidade de leituras desta restrição que se podem encontrar nos hospitais portugueses, porque da proibição à prática, vai um mundo:
Numa pesquisa de terreno realizada no mês passado em locais de recolha de sangue em Lisboa, Porto Coimbra e Santarém, as Panteras Rosa registaram uma inteira disparidade de situações: casos de homossexuais que foram dadores ao longo de anos que subitamente passam a ser impedidos de concretizar a doação por um médico mais zeloso; hospitais que recusam igualmente a doação por parte de mulheres lésbicas; centros regionais do IPS que fogem à regra e permitem discretamente a doação por homossexuais masculinos... em que ficamos, afinal?
Onde está a harmonização do sistema de doação de Sangue prometida há anos e "a uniformização dos critérios de avaliação das dádivas de sangue"? Onde está, aliás, a nova Lei Orgânica do Instituto Português de Sangue? Porque demora o sistema de hemovigilância adequado que o Plano nacional de saúde 2004/2010 admite ser urgente implantar, e que permitiria a divulgação dos dados nacionais do sangue recolhido, nomeadamente a prevalência de dádivas infectadas com o HIV ou as hepatites B e C, doenças cuja sub-notificação é por demais conhecida?
Onde está, já agora, a transposição para a legislação nacional da Directiva 2004/33/CE da União Europeia, que se refere à qualidade do sangue e aos critérios de exclusão de doação no espaço da UE e que deve ser adoptada em todos os seus Estados-membros?
"ANEXO III
CRITÉRIOS DE ELEGIBILIDADE DE DADORES DE SANGUE TOTAL E DE COMPONENTES SANGUÍNEOS
(Artigo 4.o)
2. CRITÉRIOS DE SUSPENSÃO PARA DADORES DE SANGUE TOTAL E DE COMPONENTES SANGUÍNEOS
2.1. Critérios de suspensão definitiva de dadores de dádivas homólogas (...)
Comportamento sexual - Indivíduos cujo comportamento sexual os coloque em grande risco
de contrair doenças infecciosas graves susceptíveis de serem transmitidas pelo sangue”.
Exactamente que “comportamento sexual” que “coloque em risco de contrair doenças infecciosas graves susceptíveis de serem transmitidas pelo sangue” é que o IPS atribui particular e exclusivamente a homossexuais? E como se explica, por exemplo, que as mesmas pessoas possam ser dadores de medula óssea (uma forma alternativa de doação de sangue) sem qualquer restrição?
Há mais de dez anos que estamos curiosos e sem receber respostas. E há demasiado tempo que esperamos.
Porque saímos tod@s prejudicad@s?
Em primeiro lugar, por continuarmos a viver num País que discrimina em função da orientação sexual, em que a homofobia ainda é critério oficial.
Mas, sobretudo, no caso concreto, (as campanhas públicas do IPS não mentem) porque os Hospitais precisam mesmo desse bem precioso que é o Sangue. “A colheita de sangue é inegavelmente insuficiente para fazer face às necessidades do País”, é o Plano Nacional de Saúde 2004/2010 que o afirma.
Mas milhares de potenciais dadores estão a ser excluídos liminar e aleatoriamente de o doar, sem acréscimo de salvaguarda da protecção da qualidade do sangue e por via duvidosa para a mesma.
Esta é uma política PERIGOSA!
Perigosa, porque desperdiça imenso sangue de qualidade, que escasseia nos hospitais. Perigosa, porque fomenta a percepção que os homossexuais são, em si, um risco para as doenças infecto-contagiosas. Quantos mais adolescentes heterossexuais portugueses se desleixem nas suas práticas sexuais por acreditarem nesta ideia - vejam-se os números de 2004 para o HIV: 34,5% para heterossexuais e 11,7% para homossexuais masculinos, com tendência para crescer no grupo heterossexual – mais estará em risco a sua saúde e a saúde de todos.
Trata-se de combatermos uma política de saúde que é baseada em falsidades científicas e que não olha à realidade do mundo social que a rodeia.
Trata-se de discriminação, porque se encara todo um grupo (os homossexuais) como reprodutores de um comportamento único e estereotipado.
Por tudo isto, hoje, na véspera do Dia Mundial Contra a Homofobia, - à falta de uma resposta médica séria e perante anos de diálogo de surdos com o IPS, - queremos do ministro da Saúde, a tutela, a única resposta política exigível: a revisão de um critério discriminatório.
Movimento Panteras Rosa – Frente de Combate à LesBiGayTransfobia
Véspera do Dia Mundial Contra a Homofobia