A repressão da homossexualidade no Estado Novo
Tendo sido “classificado de “pederasta passivo e habitual” na prática de vícios contra a natureza”, Fogaça é sujeito a um período de detenção seguido de uma “liberdade vigiada” por cinco anos, sob obrigação de fixar residência em Lisboa, dando conhecimento da morada à Polícia Judiciária, mas não podendo ausentar-se sem prévia autorização do Tribunal. É-lhe ainda imposto “dedicar-se ao trabalho honesto com permanência, mas não à prática de quaisquer vícios contra a natureza”, bem como “não acompanhar cadastrados, antigos companheiros de prisão, pederastas ou quaisquer pessoas de conduta duvidosa (...)”.
Não se trata da primeira prisão desde dirigente do PCP. Em 1935 foi preso e deportado para a prisão do Tarrafal (Cabo Verde). Amnistiado, regressa a Portugal em 1940 e participa na reorganização do PCP. É de novo detido em 1942, sendo de novo amnistiado em 45, após nova passagem pelo Tarrafal.
Durante a década de 50, sustenta, a tese do derrube pacífico do regime, mas acabará por sair derrotado da disputa interna contra Álvaro Cunhal pela definição da linha do partido no combate ao regime do Estado Novo. Nessa altura, tinha já sido detido na Nazaré, e só será libertado em 1970.
Mas a sua orientação sexual – e não a sua actividade “subversiva” enquanto comunista - foi desta vez o pretexto. E será utilizada tanto pela PIDE como pelo PCP para traçar a sua sorte. O partido, que no seguimento da derrota da sua linha política, acusada por Cunhal de ser um “desvio de direita”, já havia excluído Fogaça da fuga de um conjunto de dirigentes comunistas do Forte de Caxias, em 1961, expulsa-o pouco tempo depois da organização, igualmente com o pretexto da sua conduta moral e uma acusação de irregularidades relacionadas com fundos. A sua homossexualidade é também sobejamente utilizada pela PIDE, através da divulgação da confissão do seu companheiro de detenção junto dos meios oposicionistas, de forma a denegrir o PCP.
O caso de Júlio Fogaça, apesar da particularidade do uso político que teve, pode ser olhado como uma caricatura da hipocrisia moral do Estado Novo perante a homossexualidade, a sexualidade não-reprodutiva e tudo o que é considerado marginal à “ordem moral” defendida pelo regime ao longo da sua vigência. Desde as campanhas públicas moralizadoras iniciais e criação de legislação repressiva no domínio dos costumes, até à institucionalização de um modelo repressivo e carcerário que recaía sobre um vasto conjunto de “marginalidades e “imoralidades”, mas que penalizava sobretudo a pobreza, o discurso de “regeneração moral” do Estado Novo encontra eco nas defesas morais da própria oposição, como na determinação dos anarco-sindicalistas pela abolição da prostituição no início do século, ou na rejeição da homossexualidade pelos militantes comunistas, que viriam, por exemplo, a fazer dela critério de “saneamento” já no período revolucionário pós-25 de Abril.
“Regeneração moral”
O episódio de Fogaça não é inteiramente original. Outro exemplo de utilização da homossexualidade como arma de arremesso político pode ser retirado do próprio processo político que leva ao golpe militar de 28 de Maio de 1926 e inicia a construção do Estado Novo. Manuel Teixeira Gomes, sétimo Presidente da República (1923-1925, Iª República), e mais tarde opositor de Salazar, viria a afastar-se do cargo, nesse período de conturbada disputa política, com o pretexto oficial de se dedicar exclusivamente à literatura.
Em 1904, o futuro presidente, também escritor profícuo, publicava Agosto Azul: “(...) Finalmente topamos numa enseada distante com dois escaleres da armada que dois marinheiros nus enchem de areia. São marujos malteses, de pele baça e modelados como Hércules – os mesmos corpos de possantíssimos escravos que as gravuras antigas punham a remar nas galés do Grão Turco. Era placidamente heróico o espectáculo dos seus trigueiros corpos atléticos, que se bronzeavam à sobra lavados nas quentes reverberações da luz (...)”. Ainda hoje fora da historiografia corrente ou das biografias do escritor, fica a referência ao homoerotismo na obra de Manuel Teixeira Gomes, que enaltecia a beleza masculina, por exemplo dos jovens operários, e de este ter figurado entre os pretextos para a perseguição política – e moral – que lhe foi movida enquanto ocupou o cargo máximo da Nação.
Ainda no período da Iª República, em Março de 1923 o Governador Civil de Lisboa faz apreender e manda queimar exemplares de “Decadência” de Judith Teixeira, de “Sodoma Divinizada” de Raúl Leal, e das “Canções” de António Botto, na sequência de um indignado manifesto de estudantes de Lisboa, integralistas radicais e mais tarde – alguns – figuras do Estado Novo, como Pedro Theutónio Pereira, que escreve no jornal “Época” sobre a urgência de uma reacção “pronta e implacável”: “a quem manda nós apontamos hoje a necessidade imperiosa de fazer justiça, porque é preciso que os livreiros honrados expulsem das suas casas os livros torpes, é necessário que os adeptos da infâmia caiam sob a alçada da lei, que um movimento enérgico de repressão castigue em nome do bem público".
Raúl Leal atrevera-se a falar de “sodomia”, enquanto os poemas de Judith Teixeira e de Botto, que abordam de forma explícita o amor e o erotismo entre pessoas do mesmo sexo.
Contra a corrente do seu tempo, Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), fará a defesa de António Botto e Raúl Leal em "Aviso por causa da moral" (Álvaro de Campos, Europa, 1923): “Quando o público soube que os estudantes de Lisboa, no intervalo de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência (...) Os moços da vida da escolas intrometem-se com os escritores que não passam pelas mesmas razões que se intrometem com as senhoras que passam. Se não sabem a razão antes de lha dizer, também a não saberiam depois. Se a pudessem saber, não se intrometeriam nem com as senhoras nem com os escritores. Bolas para a gente ter que aturar isto! Ó meninos: estudem, divirtam-se e calem-se. (...) Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra. Tudo está certo, porque não passa do corpo de quem se diverte (...)”.
Por sua vez, Judith Teixeira defende-se com uma conferência pública, "De mim", para a qual escreve: “Vivi nas horas dessa ardente concepção, esta luxúria que era a forma da minha Sinceridade. (...) Desta minha alta concepção dos processos morais da existência, desta minha singular lealdade de “afirmar”, nasceu, pois, o desacordo entre mim e a Maioria. A compreensão vulgar chamou-me, por isto, é claro, imoral e dissolvente!...”.
De nada vale. O país está à beira de entrar em período ditatorial, como ilustram os claros apelos ao exercer da censura e a uma vigilância moral que o Estado Novo formalizaria.
A “mulher feminina”
No plano moral, o regime que resultou do golpe militar de 1926 deu resposta ideológica, legal, policial e prisional aos anseios de limpeza moral das classes burguesas urbanas que o sustentavam. Alvo das elites, toda a exclusão social: os “maus costumes de certas classes da população da cidade: ofensas corporais, desobediência, embriaguez, difamação, calúnia e injúria, ultraje à moral pública, vadiagem, mendicidade e ameaças”[1].
A Constituição do Estado Novo (1933) determinava (artº 5º) a igualdade de cidadãos perante a lei "salvas, quanto à mulher as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família". Alterado em 1971, conservou a expressão "salvas, quanto à mulher as diferenças resultantes da sua natureza". O sentido da doutrinação é claro: à mulher cabe o papel de “mãe, esposa, irmã ou filha de todos os que somos em Portugal” (Salazar[2]), e portanto confinado à família. Apesar de reconhecer o direito de voto às mulheres em 1931, o regime limita-o às diplomadas com cursos superiores ou, pelo menos, com o Ensino Secundário.
Os sucessivos Códigos Civis do Estado Novo definiam a chefia masculina do agregado familiar, com poder de decisão sobre a decisão de a esposa trabalhar ou não, ou de lhe autorizar a entrada ou saída no País. A versão de 1967 ainda declara a não-virgindade da mulher como motivo de anulação do matrimónio, legitima a violação da correspondência da esposa pelo marido, e aceita que o flagrante adultério pode determinar pena branda pelo seu assassinato.
A Obra das Mães pela Educação Nacional (criada em 1936), a Mocidade Portuguesa Feminina e organizações católicas propõem às mulheres a aprendizagem das tarefas caseiras, a ocupação integral com o cuidar dos filhos, uma valorização do “feminino”, por oposição ao novo feminismo pós-sufragistas, e aos novos estereótipos e modos de vida de mulheres a caminho da emancipação que chegavam do estrangeiro, sobretudo desde o fim da IIª Guerra.
A institucionalização de um modelo repressivo
No concreto, a “regeneração social” resultante do esforço de doutrinação do Estado Novo, visa particularmente a visibilidade social da mendicidade e da “indigência” ou “vadiagem” - negando e ocultando a existência da pobreza e da miséria -, da prostituição (ora legalizada por Salazar em 1938, ora proibida de novo a partir de 1943 por pressão da Igreja Católica), ou de toda a sexualidade que agredisse “o princípio básico da moral sexual”, o primado da família patriarcal, e “o da sexualidade genital e da reprodução”, ou seja, quaisquer práticas para além da cópula entre homem e mulher, “acto humano por excelência, pois é com ele que a espécie humana se reproduz”[3]. Aquilo a que a legislação chamará, sem definir, “vícios contra a natureza”, e que contém não apenas os actos homossexuais, como também a prostituição e toda a sexualidade não reprodutiva.
Assim, o Código Penal (CP) do Estado Novo baseia-se no de 1886 (por sua vez, resultante da revisão do primeiro CP, de 1855), e nenhuma das reformas a que o submete - 1954, 1972, 1975 e 1977 – altera o princípio de criminalização da homossexualidade, que em Portugal só seria abolido com a revisão de 1982. Mas vai mais longe, assumindo para o Estado a responsabilidade de uma intervenção musculada para lidar com problemas sociais que normalmente ficariam entregues à esfera da actividade social da Igreja Católica.
Mas, no contexto de longos períodos de depressão económica, de um êxodo rural crescente e permanente para as cidades, de um trabalho assalariado sem garantias nem segurança, grande parte da população, pobre, entrava potencialmente na qualificação de marginal. “A repressão, pelo Estado Novo, de mendigos, prostitutas, doentes mentais e homossexuais, a cargo da Polícia de Segurança Pública, tinha o duplo objectivo de os separar do resto da sociedade e de dar credibilidade ao projecto de regeneração dos portugueses (...)”[4]. Afastar do corpo social dos “bons portugueses” os maus exemplos desviantes e “contagiantes” de “moral duvidosa”, que questionavam directamente os pilares da ideologia de Estado (submissão aos valores do trabalho, da obediência hierárquica, da família patriarcal), era essencial para credibilizar o projecto “regenerador” do regime e esconder as realidades sociais incómodas que se temia prejudicarem a “imagem” externa do País.
Assim, nos anos 30, desenvolve-se uma política estruturada, fundamentalmente policial e carcerária, de repressão da vadiagem e demais “marginalidades”. No artigo 71º do Código Penal do Estado Novo, os indivíduos que se entregassem “habitualmente à prática de vícios contra a natureza” são equiparados a tipos sociais como os "vadios", os "mendigos", os "rufiões que vivam a expensas de mulheres prostituídas", bem como às "prostitutas que sejam causa de escândalo público”, sendo-lhes atribuídas no artigo anterior as mesmas penalizações.
Entre estas, encontramos “medidas de segurança” como o “internamento em manicómio criminal”, “o internamento em casa de trabalho ou colónia agrícola”, a “liberdade vigiada”;a “caução de boa conduta” ou a “interdição do exercício de profissão”.
A insistência no carácter “habitual” dos vícios penalizados tem razão de ser. Apesar de o início do século XX ter sido marcado pelos precursores da sexologia e do movimento homossexual moderno, com o resultado da descriminalização da homossexualidade na Alemanha e na Rússia bolchevique, a base da criminalização da homossexualidade assenta por esta altura, nas sociedades ocidentais, numa nova visão, medicalizante, do “desvio” homossexual, de que Egas Moniz é exemplo em Portugal, e que perdurará nas legislações repressivas de todo o século XX[5].
A medicalização do “desvio”
Já em 1902, Egas Moniz ditava as linhas desse olhar "científico" que a medicina moderna lançaria sobre a homossexualidade, considerando-a uma doença mental e uma perversão, na sua obra “A Vida Sexual”. No segundo volume, “Pathologia”, que permaneceu como livro de referência e de grande influência em Portugal, quer no meio médico, quer no meio jurídico, escrevia sobre o lesbianismo: “O tribadismo está bastante espalhado e grassa com grande intensidade, epidemicamente mesmo, nos centros mais populosos da Europa. Encontram-se em todas as sociedades, mas onde mais se evidencia é no mundo da prostituição, entre as actrizes e no seio da aristocracia”. Assim, a lésbica, ou “(...) tribade passa uma vida intima de torturas por não ter nascido homem: ella e o uranista completar-se-hiam operando uma troca de orgão sexuais.” Ou, mais claro, sobre a homossexualidade: “(...) A inversão sexual é uma doença tão digna de ser tratada como qualquer outra”.
As notas de rodapé a uma edição de 1986 do CP, citadas por Fernanda Câncio[6], distinguem os homossexuais masculinos entre “invertidos” - “verdadeiros homossexuais, aqueles que assim procedem porque uma força estranha, um impulso da natureza, um pendor independente da sua vontade, dominando-os inteiramente, lhes anula toda a resistência que seria natural revelarem (...)”, a serem “curados” e não castigados, “pois quem é homossexual por doença não pode ser castigado (...)” -, e “homossexuais perversos” ou “pseudo-homossexuais”, os que assim se comportam “(...) por imitação, por vício, por curiosidade, por divertimento até, e que em si não contêm qualquer estímulo íntimo que a tal os leve”.
A mesma distinção entre “doença” e uma “perversidade” de perigo contagiante é estendida à homossexualidade feminina, que, no entanto, nunca é citada, no entender dos juristas da época para não “dar más ideias às mulheres portuguesas”[7]. Mas na prática, a repressão concreta não distingue entre “doente” ou “perverso e reincidente”, nem deixa de fora o lesbianismo, aplicando a toda a homossexualidade as mesmas penalizações. Estas, aliás, não se ficam pelas descritas no Código Penal, podendo ser acompanhadas de sanções complementares como “exclusão da prestação de serviço militar, quando se traduzam em actos atentatórios dos bons costumes ou que afectem gravemente a dignidade, judicialmente reconhecidos ou em processo disciplinar”, “efeitos disciplinares quando, tratando-se de funcionários públicos, possam integrar factos gravemente atentatórios do seu prestígio ou da dignidade da função”, “certas inibições ou incapacidades civis, como a inibição do poder paternal (...)”.[8]
Poucos aspectos da ditadura estarão hoje tão pouco estudados e desenvolvidos pelos historiadores quanto o das consequências da metódica repressão moral e penal sobre as sexualidades tidas como “vícios contrários à natureza”. E, no entanto – tal como durante a repressão se encontravam formas de resistência e vivência - particularmente a partir da década de 60, o mundo muda e os novos exemplos penetram, embora lentamente e com grandes resistências.
Como os vindos dos Estados Unidos, onde a partir dos anos 50 se desenvolvem movimentos homossexuais públicos e no final dos anos 60 - os das revoltas estudantis em Portugal ou do Maio de Paris - terão lugar os motins que marcam a génese do movimento LGBT[9] moderno. Dali chegam, por exemplo, os filmes e as actrizes de culto que anunciam esses novos modos de vida nas entrelinhas da censura, corporizados também nas mudanças radicais da moda pronto-a-vestir, na roupa feminina cada vez mais simples e funcional, ou na chegada de estilos musicais como o “rock”, ou de “tipos” juvenis constituídos com base na experimentação de drogas. O Estado Novo pouco mais pode fazer do que atrasar a chegada de uma mudança que o ultrapassa – e à realidade nacional – mas que também em Portugal vai penetrando e respondendo aos novos anseios liberalizadores dos costumes de uma juventude a que a sociedade de consumo, entre outros factores, começa a dar identidade social própria.
A perseguição às expressões da homossexualidade na literatura e nas artes vai também ser uma constante no Estado Novo. Se falar de sexualidade já não é desejável, simplesmente escrever sobre homossexualidade é para muitos autores correr o risco de auto-inculpação. Nem “A Vida Sexual” de Egas Moniz, escapa à proibição. Nacionais ou estrangeiros, romances, livros de sexologia e psicanálise, filmes, despachos de agências noticiosas são proibidos numa base moral, para preservar os tabus instituídos e evitar junto da juventude o seguir de modelos “vindos de fora”.
Assim o dizem de forma transparente os próprios censores, na fase final do regime:
“04.02.1969 – Reuter de Paris. Fala na utilização da pílula. Não falar em pílula no título. Coronel Saraiva”[10].
“24.01.1971 (23:00) – Notícia ou anúncio da TV europa, de uma emissão às 20,30 de amanhã sobre sexualidade nas sociedades modernas – é para CORTAR. Dr. Ornelas”[11].
Sobre o filme Baby Love (“Amor Perigoso”), de Alastair Reid, Pinto Fernandes, censor, escreve em 1969: “Trata-se de um filme que, pelo seu tom geral, não merece ser importado. Além das cenas que exibem intenso realismo (modelo pouco aconselhável para a juventude), mostra outras imbuídas de homossexualismo feminino (...)”[12]
Sobre outro filme proibido, “Intim Report” (Rubin Sharon, 1968): “Trata-se de mais um filme sobre temas sexuais. São postos com a maior naturalidade problemas de mães solteiras, aborto, homossexualismo nas prisões, sexualidade em ambientes juvenis, e tudo sem a conveniente reprovação moral”.[13]
“02.08.1970 O caso de Beja, de dois cavalheiros que se suicidaram. Eram homossexuais. Não se pode dizer que pediram, nas cartas que deixaram, que os sepultassem lado a lado nem que veneno tomaram”.[14]
“12.08.1972 (22,55) – No Parque Eduardo VII, em Lisboa, numa rusga policial, foram presos 24 indivíduos – vadios, prostitutas e homossexuais. Pode falar-se nos vadios e nas prostitutas, mas não nos homossexuais. Tenente Teixeira”[15]
Esta tentativa de apagar o “desvio” da realidade cultural e social, tem naturalmente ainda maior correspondência na vida real. A secção de costumes da PSP vigia os locais públicos e desdobra-se em rusgas e detenções que forçam as vivências homossexuais à clandestinidade e ao silêncio. É o “passa-palavra” sobre locais de encontro e convívio: “Não havia sítios oficialmente conotados. Mas havia sítios onde as pessoas sabiam que iriam encontrar outras, por transmissão pessoal”. (...) Havia grupos fechados que se convidavam entre si, mas os lugares públicos eram perigosos por causa da Polícia dos Costumes. A qualquer hora podiam aparecer 2 ou 3 agentes que identificavam todos os presentes e levariam presos os que não tivessem identificação consigo ou que lhes parecessem suspeitos; presos pelo menos por algumas horas, mas ficando isso registado no cadastro individual (...)”.[16]
Alternativa são as pensões que, apesar de controladas pela polícia, abrem portas à prostituição, fechando também os olhos a outras actividades. Sobravam as praias, com menor vigilância, como as da Costa da Caparica antes da construção da ponte sobre o Tejo (1966), de que os homossexuais lisboetas, pelo menos a partir dos anos 50, começam a fazer local de encontro e convívio. Ou então os perigosos, porque extremamente vigiados, locais “de engate” – estações de comboio, saunas, ou “os urinóis”, como referido por um guarda da secção de costumes da PSP de Lisboa em entrevista a Susana Pereira Bastos: “Antigamente, havia junto daqueles sanitários públicos, os urinóis, no Rossio, no Largo da Anunciada, no Cais do Sodré, no Campo Pequeno (...) Eram homens, pederastas, que iam para os mictórios fazer as suas conquistas”.
[2] Oliveira Salazar, “Discursos e notas políticas”, 1939.
[3] jurista Carmona da Mota (citado por Figueiredo Dias em 1972), referência de Fernanda Câncio in “No princípio era a igualdade”, DN Magazine 9/5/99
[4] BASTOS, Susana Pereira, “O Estado Novo e os seus vadios” – Contribuição para o Estudo das Identidades Marginais e da sua Repressão, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997
[5] Inclusivamente no caso português: termos como “inversão” ou “aberração” do instinto sexual natural” persistem, por exemplo, nas regulamentações militares até final dos anos 90.
[6] DN magazine 9/5/99, “No princípio era a igualdade”.
[7] AGUIAR, Asdrubal de, “Medicina legal” - Lisboa : Empresa Universidade Editora - 2º vol.: Sexologia forense, 1941.
[8] Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, Janeiro de 1980, elaborado por Lopes Rocha, no qual se sustenta que “não estão consagradas na lei portuguesa discriminações relativamente aos homossexuais, unicamente decorrentes desta anomalia”, não podendo “todavia, analisar-se os efeitos descritos na conclusão anterior como verdadeiras discriminações, uma vez que os mesmos podem resultar, em termos genéricos, de mau comportamento social ou de actos atentatórios dos bons costumes, que atingem outros comportamentos não necessariamente relacionados com a homossexualidade”. A descriminalização da homossexualidade em Portugal ocorre dois anos depois.
[9] Lésbico, Gay, Bissexual e Transgénero.
Etiquetas: discriminação de Estado, História, homofobia, PCP, polícia
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