!DOCTYPE html PUBLIC "-//W3C//DTD XHTML 1.0 Strict//EN" "http://www.w3.org/TR/xhtml1/DTD/xhtml1-strict.dtd"> Panteras Rosa: A comunidade que queremos não se deixa matar

quarta-feira, outubro 03, 2007

A comunidade que queremos não se deixa matar


Ao surgir apenas nos anos 90, o movimento LGBT português, ao contrário do de outros países, não viveu enquanto tal o contexto de emergência face ao VIH que se verificou nos anos 80, com a comunidade gay a ser ceifada e apontada como centro e causa da infecção, e a ser obrigada a redefinir o seu activismo em função da nova ameaça. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos se tocava a rebate entre os militantes, se apontavam energias para a prevenção, se criavam organizações de doentes lgbt como o Act Up, por cá, alguns precursores do activismo envolviam-se activamente nas associações de luta contra a sida, mas a criação de um movimento social LGBT teria de esperar.
E quando surge, aparece já noutro contexto, que não é de desligamento total face à questão, mas que corresponde ao progressivo enfraquecimento do tema na agenda pública, com a evolução dos tratamentos, o aumento da esperança de vida das pessoas seropositivas e a invisibilização progressiva da morte por esta causa. A emergência relativiza-se, e este novo associativismo está mais preocupado em desligar a associação VIH-homossexualidade, do que em assumir a dianteira no combate à infecção, como fizeram os seus congéneres europeus na década anterior.
E eis-nos hoje chegados a uma situação insustentável, em que sabemos empiricamente que há um relaxamento geral das atitudes face ao risco nas relações sexuais, temos a certeza empírica de que este relaxamento tem uma incidência particular na comunidade gay, quanto mais não seja porque ela continua amplamente “no armário” imposto pela estigmatização social e isso tem reflexo evidente na forma como se vivem as relações amorosas e sexuais. Porque não há, na verdade, “comunidade”, embora exista hoje um potencial dela e alguma abertura social conquistada a pulso por dez anos de movimento, e a discriminação seja ainda hoje tão auto-infligida como sofrida da parte de uma sociedade heterossexista.
Sabemos que o momento é de emergência, e no entanto continuamos a saber sem estudar, sem estudos epidemiológicos, sem investimento real. E quando falamos neles, não faltam vozes a afirmar o perigo de recolher e divulgar dados que apontarão certamente uma subida da taxa de novas infecções entre homens que têm sexo com homens, como se o silêncio fosse estratégia para lidar com qualquer problema, como se o conhecimento não fosse uma base de resposta, como sendo melhor que um dia destes tais dados sejam divulgados apesar de nós, em vez de partir de nós mesmos - movimento - o sinal de alerta e a atitude de não ficarmos parados face a uma realidade só por enquanto negável.
A nossa responsabilidade de activistas é evidente, e importa pouco se os nossos colectivos são associações de luta pelos direitos LGBT ou de luta contra a sida. A sida é assunto de todos/as, sobretudo quando atinge aqueles/as com quem trabalhamos, e quando sabemos que a comunidade para a qual trabalhamos está a ser de novo duramente atingida, provavelmente com incidência especial entre os jovens, mas fecha os olhos à doença, pois esta é incompatível com os modelos hedonistas, redutores e discriminatórios promovidos nomeadamente pelo crescente comércio gay. A sida não é sexy, de facto, nem é vendável, e só assim se explica que no meio gay actual pareçam não existir seropositivos.
E se lutar pelos direitos LGBT – como pelos de outras populações marginalizadas – é já lutar contra o VIH, é claro que isso não basta neste momento. A luta contra a sida é um tópico indispensável a re-incluir nos discursos associativos, como parte de um chamado à responsabilidade colectiva e individual de uma população oprimida que ainda hoje não se mobiliza pelos seus direitos, se discrimina mutuamente em vez de fazer pela protecção do semelhante, mantém pouca consciência e muito preconceito.
A comunidade que queremos é consciente da opressão que sofre, e das suas origens; não promove o sexismo ou a transfobia, nem nega, nem discrimina as pessoas seropositivas, assumindo a diversidade da sua própria realidade; recusa qualquer tipo de discriminação, de preconceito, de marginalização; envolve-se colectiva e individualmente na construção de um movimento que transforme as vivências sociais e sexuais face à homossexualidade; contribui para a criação de um sentimento colectivo, comunitário, face à discriminação; não olha para o lado face a uma ameaça evidente; assume-se como comunidade e age de acordo com isso.

A comunidade que queremos não é a que temos, e mesmo a que temos está em risco. Sabemos já, por experiência própria, como a temática da sida pode servir para aprofundar a marginalização de comunidades já estigmatizadas. Não agir de acordo com essa certeza é tão criminoso hoje como o teria sido nos anos 80.

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