Tenho 50 anos e não me estou a lembrar neste momento de nenhum outro crime em Portugal ao longo da minha vida com maior gravidade. Digo isto, pela acumulação de factores. É um crime de ódio, pois a condição sexual da vítima foi o motivo, não havendo qualquer outro, de natureza pessoal. Tem evidentes motivações racistas (entendo que a transfobia e a homofobia são formas particulares e refinadas de racismo). Praticado com requintes de malvadez. Praticado por um grupo sobre uma vítima. Praticado sobre uma pessoa indefesa. Praticado sobre uma pessoa claramente doente. Praticado de forma reiterada e consciente, com uma parte em cada dia, enquanto a vítima ia progressivamente agonizando. Há ocultação de cadáver. O que querem mais? E que mais horrores ainda viremos a saber?
Também eu vi e ouvi na madrugada de ontem na RTP o tal padre ligado à Instituição (a que o Sérgio se referiu) dizer que os ditos rapazes tinham morto "o sem-abrigo" por este ter abusado sexualmente deles (ou muito me engano ou foi isto que ouvi, embora já não consiga reproduzir com precisão). O que é MUITO REVOLTANTE a TODOS os níveis! Claro que isto não passava de uma tentativa, completamente abjecta e profundamente IMORAL, de sacudir a água do capote da Instituição e provavelmente dele próprio, que devia ter cuidado dos menores que estavam à guarda deles e não o fizeram.
Mas é igualmente de uma gravidade ENORME porque, se ele sabia (que não sabia, claro) de uma situação de abuso sexual de menores que estavam à sua guarda, tinha OBRIGAÇÃO de a ter denunciado IMEDIATAMENTE às autoridades e não o fez. Se assim fosse ELE PRÓPRIO estaria a ser CONIVENTE com uma situação de abuso sexual de menores (e embora isto me levante muitas interrogações, prefiro não ir mais longe por aqui por agora, pois não tenho dados que mo permitam fazer).
É óbvio também que muita comunicação social está a ser conivente com a tentativa de de retirar à Gisberta ATÉ A SUA PRÓPRIA IDENTIDADE. Será só por ignorância? Ainda ontem a Jó manifestou a jornalistas a sua indignação por este facto, e hoje CONTINUAM a fazer o mesmo nos mesmos jornais. O Público, pelos vistos , é um exemplo acabado. Mas quase todos continuam a afinar pelo mesmo diapasão. NÃO SERIA DE DESATARMOS TODOS/AS A TELEFONAR PARA TODAS AS REDACÇÕES DOS ÓRGÃOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL A MANIFESTAR A NOSSA INDIGNAÇÃO POR ISSO MESMO? Dizermos-lhes claramente e com firmeza, a cada um/a se eles/as gostariam que lhes retirassem a sua própria identidade e os/as tratassem Na comunicação social como se fossem de outro género? Ou como se não tivessem nome?
Este crime é obviamente um crime de ódio, assumindo SIMULTANEAMENTE contornos de transfobia E de homofobia. Já nenhum de nós duvidará certamente que se tratou de um crime de transfobia, depois das palavras de indignação da Jó. Mas a meu ver é TAMBÉM de homofobia. Se não, vejamos o que ainda agora mesmo, no noticiário da SIC Notícias das 15 horas, foi dito. Que os rapazes agressores (e passo a citar 'ipsis verbis') "confessaram que tinham o hábito de sair à noite à procura de homossexuais com o intuito de lhes bater". Se isto não é homofobia então é o quê?
Claro que a Jó Bernardo tem toda a razão em sublinhar que se trata de uma MULHER e TRANSGÉNERO e que foi assassinada exactamente por essa sua condição, logo, é um crime de TRANSFOBIA - e isto tem que ser dito até à exaustão se for preciso. Mas também é muito mais do que isso, é também de homofobia. A meu ver, temos que exigir do poder político não só uma punição exemplar, como legislação que "desencoraje" que qualquer crime desta natureza volte a repetir-se em Portugal. Se não for feito nada neste sentido, a mensagem que passará para a sociedade é a de que o mesmo poderá voltar a ser feito sem grandes problemas e sem grandes implicações.
Estou convencido de que temos pela nossa frente um trabalho tremendo neste campo. E a muitos níveis. E embora eu esteja bem consciente de que é na natureza transfóbica, homofóbica e racista deste crime que tem que incidir o nosso grito de indignação, pergunto-me pessoalmente: se este crime não for exemplarmente punido e a legislação alterada, O que vale a vida de uma transexual? O que vale a vida de um/a homossexual? O que vale a vida de uma pessoa de qualquer grupo minoritário? O que vale a vida de um/a sem-abrigo? O que vale a vida de uma pessoa pobre? O que vale a vida de uma pessoa doente? O que vale a vida de uma pessoa indefesa? E que valores éticos, morais, de CIDADANIA estão as instituições (do estado, da igreja, etc.) a promover nos nossos adolescentes, particularmente nos mais vulneráveis?
Sou professor e tenho tido contacto frequente com menores em situações de risco e, enquanto director de turma, lidado com alguns organismos e instituições nessa área, incluindo alunos em internatos e "acompanhados" por comissões de protecção de menores. Praticamente todas as entidades que tenho conhecido no âmbito do Ministério da Justiça são uma verdadeira anedota. De bradar aos céus. Do Ministério da Segurança Social não diferem grande coisa. Para não falar no Ministério da Educação... E pergunto, sobretudo, que resposta é que o P oder vai dar a estas minhas perguntas neste caso? Que sinais vão ser dados para a sociedade? E nós, que pressão poderemos fazer?
Júlio Pires
PS - Este texto expressa opiniões e emoções apenas a título individual, não veiculando qualquer associação, obviamente.
Nota Panteras Rosa: o texto é publicado a pedido das Panteras Rosa, com autorização do autor, que não se encontra associado às Panteras Rosa. É uma de inúmeras opiniões que se têm expresso nos últimos dias que nos têm ajudado a reagir a este caso.
Sem desvalorizar muitos posicionamentos importantes que têm tido lugar, aconselho igualmente a leitura de artigo de Fernanda Câncio em
http://gloriafacil.blogspot.com/2006/02/gis.html
e de Miguel Vale de Almeida em
http://valedealmeida.blogspot.com/2006/02/dois-dias-em-s.html
Etiquetas: Gisberta, transfobia
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