quinta-feira, outubro 04, 2012
(ou porque é que não, não nos falta só a adopção)
por Sérgio Vitorino
Atentar na realidade concreta das
vidas permite compreender que as discriminações e desigualdades sociais de todo
o tipo determinam a desigualdade dos impactos desta crise económica e social; que
mesmo direitos reconhecidos – se sobreviverem formalmente à ofensiva
ultra-liberal – podem tornar-se inacessíveis quando as condições materiais das
vidas se alteram dramaticamente; que nenhuma temática ou movimento é uma ilha.
Exemplificando com um tema
historicamente caro ao movimento LGBT – e apenas no exemplo parcial da área da
Saúde/políticas de prevenção/ataque generalizado ao SNS – observemos o
significado da ameaça de extinção do programa de troca de seringas nas
farmácias ou do racionamento drástico e em curso dos preservativos disponíveis
para distribuição gratuita – principais vias da diminuição da taxa de novas
infecções pelo VIH em Portugal –, ou ainda as recentes declarações do
Presidente do CNECV sobre racionar medicamentos e tratamentos a doentes com
sida (ou oncológicos), que mais não são que um providenciar de cobertura – numa
lógica perversa de distinção entre ‘bons’ e ‘maus’ doentes – a práticas já a
serem impostas nas unidades de Saúde pelas medidas de contenção. Quantos
movimentos, para lá dos profissionais de saúde e dos utentes organizados, não
têm que ver com isto ou uma perspectiva própria sobre o tema?
Falsamente semi-concluída uma
agenda legal de luta pela igualdade formal – não fosse a) ter-se gorado a
melhor oportunidade de legislar sobre igualdade parental com a invenção
nacional e mundialmente inédita do “casamento sem adopção”, b) a “bandeira” da
adopção (em rigor, co-perfilhação, nas suas várias possibilidades) esconder um
universo de outras discriminações relacionadas com direitos parentais e, c) a
manutenção de várias outras discriminações legais como a dos homens que têm sexo
com homens na doação de sangue –, é fácil perceber a adversidade do contexto
legislativo actual, o esmagar das classes médias urbanas que constituíram o
grosso destas primeiras gerações de um movimento LGBT e a forma como a
precarização do conjunto das vidas está a afectar de maneira própria diferentes
grupos sociais, e de que formas está a afectar as populações LGBT. Assim como é
irracional debater medidas de contenção económica sem atentar aos seus efeitos
sociais, logo, às diferentes frentes da sua contestação, perante a brutalidade generalizada
actual qualquer movimento social tem que se reequacionar e à sua agenda, e
requestionar as fronteiras dos “seus” temas estritos, urgências e alianças, ao
invés de afunilar agendas e tentar combater os diferentes efeitos sem olhar às
causas comuns.
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