Rugido felino sobre a tertúlia do dia das memórias trans
Estamos certas de que as situações de violência de origem transfóbica se combatem com a sua constante visibilidade e denúncia, nunca sendo a sua ocultação ou escamoteamento, o caminho para combater qualquer tipo de violência, pois as transformações de mentalidades ocorrem quanto se alteram as ideologias moralmente dominantes. Podemos seguir, por exemplo, as campanhas de combate à violência doméstica, que têm apostado todo o seu combate através na divulgação de dados referentes a estes crimes, bem como no apelo ao processo de denúncia pública.
Deste modo, não podemos deixar de lamentar a posição da presidente da associação AMPLOS, Margarida Faria, que, presente na tertúlia, referiu que em Portugal não existem crimes de transfobia, pois os dados de que tem conhecimento referem-se a “países como o Brasil”, onde a violência transfóbica, devido à falta de redes de apoio associativo, acaba por ser mais evidente.
Sabemos que o Brasil, com uma diversidade cultural, económica e geográfica tão diversa, não pode ser classificado como representante de um contexto único, coeso e uniforme. E sabemos, também, que a existência de maior denúncias ou conhecimento de crimes (transfóbicos ou outros), pode significar exactamente que estão reunidas mais condições para a denúncia e identificação de um tipo específico de crime e não que o contexto só por si designa uma sociedade como mais violenta ou mais desigual.
Tal como no Brasil, também em Portugal, podemos viver em contextos bastante distintos e que não podemos considerar menores os problemas que vivemos, no nosso contexto específico, por referência a outros contextos culturais. A transfobia como crime, não é facilmente identificável devido às especificidades decorrentes da própria invisibilidade das pessoas transexuais e transgénero. Acaba, deste modo, por só ser denunciada quando as associações ou colectivos LGBTQ têm conhecimento público das situações ocorridas e têm capacidade para identificar estas situações.
No debate que referimos, em que estavam presentes duas pessoas trans* com as respectivas mães, entendemos com base nos seus testemunhos que a informação e o conhecimento de situações de crimes transfóbicos, por poderem ser chocantes, devem passar para um segundo plano, competindo às associações reforçar os exemplos positivos como forma de mostrar como se “vence a transfobia”.
Seguiu-se um momento no qual foi apresentado um quadro quadro como ‘momento’ no qual as pessoas convidadas, afirmaram nos seus testemunhos, estudar em escolas onde os professores são tolerantes, os colegas extremamente inclusivos e que esta situação “feliz”, resultou da própria capacidade de afirmação das pessoas trans* ali presentes. As Panteras Rosa sabem que as únicas formas de nos proteger enquanto pessoas trans*, são construindo uma frente activa e eficaz de combate permanente a uma sociedade cisgeneronormativa, heteronormativa, patriarcal e profundamente transfóbica. Sabemos igualmente que nem todas as pessoas têm a possibilidade de estudar nem viver no contexto urbano, onde a diferença se dilui na indiferença, ou de ter acesso a essas mesmas redes de apoio (amigos, familiares, relacionamentos), que os ajudem a superar a transfobia a que estão sujeitas diariamente.
Por isso afirmamos que a responsabilidade de combate a qualquer discriminação, neste caso do combate à transfobia, nunca deve ser colocado nas mãos das própria vítima.
Entendemos que a tertúlia, no âmbito do evento Dia da Memória Trans, em memória das vítimas de crimes transfóbicos, não evidenciou, por parte dos testemunhos apresentados, uma parte crucial do real, e que, por parte das mães aí presentes, foram desvalorizados crimes de transfobia por a vítima pertencer a um contexto minoritário múltiplo susceptível de a tornar facilmente vítima de qualquer outro tipo de discriminação. As Panteras Rosa estão atentas à transfobia em Portugal, sabemos que existe, e não se torna menor ou menos transfóbica a violência perpetuada sobre pessoas trans* que são cumulativamente vítimas de discriminações múltiplas como: o racismo, a xenofobia, a homofobia, a discriminação com base na origem social, ou no estilo de vida.
O facto de uma pessoa trans* poder ser vitima de discriminações múltiplas, não só a transfobia, mas também racismo, xenofobia, sexismo, homofobia, entre outras, apenas reforça o facto de que a transfobia ainda é ignorada não só pela sociedade em geral, mas também por algumas associações de defesa dos direitos LGBT, resultando em que muitas vezes seja apontado um outro tipo de discriminação para justificar a transfobia, o que só significa que esta ainda não é um fenómeno de exclusão e marginalização, ao qual a sociedade atribui a devida importância.
Confundir racismo, homofobia ou machismo, em crimes de ódio sobre pessoas trans*, apenas significa que a transfobia continua evidente, embora camuflada por uma invisibilidade crescente, na qual o movimento social tem as suas responsabilidades.
Entendemos, deste modo, que o racismo, homofobia ou o machismo estão a transformar as suas formas de actuação, embora estejam muito longe de ser erradicados. Estas novas formas de exclusão reflectem-se exactamente no ataque às pessoas mais vulneráveis e sujeitas a discriminações múltiplas. Só deste modo se pode analisar as posições que foram assumidas por alguns participantes da tertúlia, que parecem aceitar estes "racismos" como um problema que está fora do âmbito do activismo LGBT, quando aplicados sobre pessoas a quem a identidade de género não é percepcionada como a norma cisgeneronormativa.. Como se às pessoas trans* não lhes fosse permitido serem de qualquer outra forma que não a de indivíduos que, devendo ser ‘suficientemente’ homens ou mulheres, serão pessoas brancas, heterossexuais, ocidentais, de classe média e, na sua generalidade, com padrões morais, comportamentais e sexuais considerados normativos.
Não aceitamos justificações de que a menor incidência de crimes de ódio no país, em virtude da identidade de género, descaracterizem a natureza dos mesmos ou a identidade da própria vítima. Nunca esqueceremos e lutaremos para que nunca se esqueça a morte violenta de Gisberta, agredida, molestada e abandonada para morrer, por adolescentes ao cuidado de uma instituição do Estado. Deste modo, lamentamos que uma das mães presentes como testemunha, e membro da associação AMPLOS, tenha referido que tem dúvidas se Gisberta foi ou não vítima de um crime de transfobia. Seria caso para nos perguntarmos se em todos os crimes ocorridos sobre pessoas sem abrigo, a molestação sexual com objectos é uma prática comum? Ou se as afirmações de um dos assassinos na altura do crime, “não gosto de gajos com mamas”, serão afirmações comuns em crimes que ocorrem sobre pessoas cisgéneras?
Recordaremos sempre Luna, cujo corpo em adiantado estado de decomposição, foi depositado num contentor de entulho, desconhecendo-se até hoje quem causou a sua morte. Contudo, não duvidamos nunca que, embora se desconheçam as causas e motivações da sua morte, foi também ela vítima de transfobia, quer em vida quer após a sua morte, quando, por exemplo, nos média foi frequentemente confundida com um travesti.
Sabemos, também, que a transfobia não se revela apenas através de crimes de ódio, mas também está presente na falta de apoio às exigências médicas específicas de qualquer pessoa trans*; nas leis que que não protegem nem respeitam a autonomia individual; nos ataques diários e violentos sobre pessoas trans*, de entre as quais se encontram as violações e as múltiplas agressões físicas e psicológicas de que são vítimas; na patologização psiquiátrica e psicológica do que se considera “perturbação da identidade de género”, e através do policiamento de género e da expressão deste, remetendo o indivíduo para “caixas” que descaracterizam a pessoa na sua própria expressão e identidade de género, tirando o orgulho em ser quem é e ser como é. Neste ponto podemos ainda lamentar que nem todos os processos corram da melhor forma; que numa legislação patologizante das identidades trans*, os processos cirúrgicos de que estas necessitam sejam tão mais díficeis quanto mais tarde é iniciado o processo, e que, como tal, a legislação está muitas das vezes refém dos próprios preconceitos médicos existentes.
As condições cada vez mais precárias em que vivem as pessoas trans*, deixam-na ainda mais vulneráveis perante a crise e a austeridade, onde o escárnio dos diferentes será a primeira aliança esperada entre o patriarcado e o capitalismo.
Em última análise, perante uma linguagem de género binário presente ao longo da tertúlia, reforçamos também a necessidade de utilização de uma linguagem mais inclusiva referente a toda a comunidade trans* e não, somente, a indivíduos cuja identidade de género assenta num modelo binário (mulher/homem). As identidades trans* não-transexuais não são mais ou menos vítimas de transfobia, pelas cirurgias, ou mudanças corporais que realizam ou querem realizar ou pela forma como se identificam para que se justifique essa separação na linguagem quando se fala de transfobia, pelo que só a propria vítima saberá em cada caso concreto como auto-denomina a sua identidade de género. A separação na linguagem, entre transexuais e transgéneros, para nos referirmos à transfobia é também ela uma forma de violência. Nesse sentido, a utilização das palavras “pessoas” ou “indivíduos” representa a inclusão, que sabemos ser a única forma de combate à fobia perpetuada contra todas as pessoas trans*.
O nosso rugido de revolta é por todas as vítimas destes ataques, contra uma sociedade capitalista, transfóbica, cisgeneronormativa, heteronormativa e patriarcal. Sempre com as garras de fora por uma frente de combate permanente contra a transfobia e o esquecimento dos crimes que tem perpetuado.
Panteras Rosa - Frente de Combate à LesBiGayTransfobia
28 Novembro 2011
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