Eleições, sangue e cobardia
Miguel Vale de Almeida aceitou ser candidato nas listas do PS. Faz ele muito bem. O Partido Socialista na apresentação do seu programa eleitoral promete a “remoção das barreiras legais ao casamento de pessoas do mesmo sexo”. E porque mais vale tarde que nunca, faz também bem.
Ao mesmo tempo, o responsável pelo Instituto Português do Sangue continua a demonstrar o preconceito mais absurdo nos critérios de selecção de dadores e a produzir declarações que são objectivamente atentados à inteligência e ao bom senso que se esperaria encontrar no responsável pela política de sangue no país.
Miguel Vale de Almeida indigna-se com estas declarações. Com razão. Escreve em blogues esta indignação. Por outro lado, escreve louvores ao partido pelo qual se candidata e às promessas no seu programa. O que espanta é que não relaciona estas duas questões, nem o facto dos responsáveis pela manutenção de Olim à frente do IPS serem seus companheiros nas listas do PS e subscreverem as práticas do preconceito na recolha do sangue. O que admira na sua prestação é a ausência de consequência e de identificação dos responsáveis por uma atitude de discriminação por parte de um organismo do Estado. Se o fizesse, pesando os prós e os contras da participação política que decidiu ter nestas eleições, talvez pudesse prometer um mandato livre e comprometido com a igualdade. Assim, parece antes o gay bem comportado e intelectual domesticado na vitrina do PS.
Debate intenso no seio do movimento LGBT, a questão do casamento e dos direitos associados constituiu este ano, pela primeira vez, reivindicação comum e visível de todas as pessoas para quem a igualdade face à lei e ao Estado é uma factor fundamental da democracia.
Após vários anos de hesitação, com a JS a avançar na proposta que o Partido não tinha coragem de assumir, o PS está finalmente comprometido com a alteração da lei e com o progresso que esta representará, juntando-se assim aos outros dois partidos da esquerda parlamentar. Mas igualdade é outra conversa, ou pelo menos, a noção de que a igualdade não é por si só suficiente para propostas programáticas e iniciativas para alterações legislativas.
No melhor dos casos, trata-se da concepção de igualdade a conta-gotas. Agora o casamento, depois (nunca se diz quando) a adopção, a procriação medicamente assistida, a lei de identidade de género. Alega-se a falta de preparação da sociedade para estas medidas, escondendo a falta de coragem, quando não o conservadorismo, que revela a sua ausência.
É verdade que casamento e capacidade familiar não são a mesma questão. Mas no domínio do debate político que enquadra estas discriminações são-no. Lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros são pessoas que sempre tiveram e têm filhos. Biológicos ou não. É a estas crianças que é dito que as suas relações familiares não são legítimas nem prioritárias. É para estas famílias, que a cobardia estratégica que faz a igualdade acabar no casamento, só pode ser um insulto.
João Louçã
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