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Panteras Rosa: julho 2009
Panteras Rosa
FRENTE DE COMBATE À LESBIGAYTRANSFOBIA
sexta-feira, julho 31, 2009
Eleições, sangue e cobardia
Miguel Vale de Almeida aceitou ser candidato nas listas do PS. Faz ele muito bem. O Partido Socialista na apresentação do seu programa eleitoral promete a “remoção das barreiras legais ao casamento de pessoas do mesmo sexo”. E porque mais vale tarde que nunca, faz também bem.
Ao mesmo tempo, o responsável pelo Instituto Português do Sangue continua a demonstrar o preconceito mais absurdo nos critérios de selecção de dadores e a produzir declarações que são objectivamente atentados à inteligência e ao bom senso que se esperaria encontrar no responsável pela política de sangue no país.
Miguel Vale de Almeida indigna-se com estas declarações. Com razão. Escreve em blogues esta indignação. Por outro lado, escreve louvores ao partido pelo qual se candidata e às promessas no seu programa. O que espanta é que não relaciona estas duas questões, nem o facto dos responsáveis pela manutenção de Olim à frente do IPS serem seus companheiros nas listas do PS e subscreverem as práticas do preconceito na recolha do sangue. O que admira na sua prestação é a ausência de consequência e de identificação dos responsáveis por uma atitude de discriminação por parte de um organismo do Estado. Se o fizesse, pesando os prós e os contras da participação política que decidiu ter nestas eleições, talvez pudesse prometer um mandato livre e comprometido com a igualdade. Assim, parece antes o gay bem comportado e intelectual domesticado na vitrina do PS.
Debate intenso no seio do movimento LGBT, a questão do casamento e dos direitos associados constituiu este ano, pela primeira vez, reivindicação comum e visível de todas as pessoas para quem a igualdade face à lei e ao Estado é uma factor fundamental da democracia.
Após vários anos de hesitação, com a JS a avançar na proposta que o Partido não tinha coragem de assumir, o PS está finalmente comprometido com a alteração da lei e com o progresso que esta representará, juntando-se assim aos outros dois partidos da esquerda parlamentar. Mas igualdade é outra conversa, ou pelo menos, a noção de que a igualdade não é por si só suficiente para propostas programáticas e iniciativas para alterações legislativas.
No melhor dos casos, trata-se da concepção de igualdade a conta-gotas. Agora o casamento, depois (nunca se diz quando) a adopção, a procriação medicamente assistida, a lei de identidade de género. Alega-se a falta de preparação da sociedade para estas medidas, escondendo a falta de coragem, quando não o conservadorismo, que revela a sua ausência.
É verdade que casamento e capacidade familiar não são a mesma questão. Mas no domínio do debate político que enquadra estas discriminações são-no. Lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros são pessoas que sempre tiveram e têm filhos. Biológicos ou não. É a estas crianças que é dito que as suas relações familiares não são legítimas nem prioritárias. É para estas famílias, que a cobardia estratégica que faz a igualdade acabar no casamento, só pode ser um insulto.
A Revolução Não Será Bipolarizada Não serás só feminino, masculino, macho ou fêmea Não serás só gaja, gajo, mulher ou homem Não serás só o rosa ou o azul, as saias, as calças, as mamas ou as pilas porque a Revolução Não Será Bipolarizada
A Revolução Não Será Bipolarizada A Revolução Não será feita pelos conservadores fascistas e racistas a Revolução Não será feita pelos que humilham espezinham, torturam, discriminam a Revolução Não será feita pelos que oprimem, censurem, ignorem e calem A Revolução Não será feita pelos tribunais, nas assembleias, esquadras, cadeias e catedrais porque A Revolução Não será Bipolarizada
A Revolução Não te será oferecida quandoassinares um contrato, comprares casa,
andaresnos transportes ou fores a hospitais
A Revolução Não te será dada pelos manuais
A Revolução Não te será dada nos cinemas A Revolução Não te será dada nos jornais A Revolução Não te será dada pelos canais nos intervalos das novelas ou dos mundiais A Revolução Não te será abatida no IRS A Revolução Não te chegará pela PlayStation, Ipod ou Internet porque A Revolução Não será Bipolarizada
A Revolução Não será Bipolarizada A Revolução Serão lantejoulas e brincos chicotes, plumas, dildos e preservativos
A Revolução serão os Cisgénero e os Transgénero
- todos sexuais
A Revolução Será mais que Ela e Ele, eu e tu A Revolução Seremos nós todos
E a Revolução é o sangue que nos arde nas veias
porque A Revolução Não será Bipolarizada
A Revolução Não será Bipolarizada A Revolução acontecerá nas gramáticas A Revolução acontecerá nos artigos definições e procedimentos A Revolução acontecerá no pensamento sentimento e conhecimento A Revolução Não será Bipolarizada
A Revolução Não será Bipolarizada A Revolução será feita por todas as Gisbertas violadas assassinadas e outros silêncios brutais A Revolução será feita nas ruas marchas e arraiais A Revolução Não será Bipolarizada A Revolução será feita por mim e por ti pelos nossos filhos e pelos filhos dos outros A Revolução tornar-nos-á iguais na diversidade A Revolução será respeito e liberdade A Revolução Não será Bipolarizada
Portugal seria único a excluir 'gays' da dádiva de sangue
Diário de Notícias
Sangue
Portugal seria único a excluir 'gays' da dádiva
DIANA MENDES
Ex-comissário português de luta contra a sida, Machado Caetano, e comissária europeia da saúde, Androulla Vassiliou, desconhecem directivas que excluem homossexuais masculinos de poderem ser doadores
"Portugal seria o primeiro país da Europa a prever a exclusão de homossexuais masculinos da dádiva de sangue", disse ao DN o ex-comissário nacional de luta contra a sida Machado Caetano. O Ministério da Saúde admitiu excluir este grupo da dádiva, por considerar que "constitui um grupo de risco", uma possibilidade que o imunologista acredita nunca se ter colocado em nenhum outro país.
Recordando uma reunião da ONUSida em que esteve recentemente - e em que se abordou esta temática - Machado Caetano sublinha que a tendência sexual "é confidencial e não deve ser abordada em nenhum acto médico.
Também a comissária europeia da Saúde, Androulla Vassiliou, citada pela Lusa, garantiu que não existe uma directiva especial da Comissão Europeia que exclua os homossexuais do grupo de dadores de sangue. "Não existe qualquer regra especial. Isso é um mito. A preocupação é sempre com a segurança e a qualidade do sangue".
Há dois dias, foi divulgada a resposta do Ministério da Saúde a uma pergunta do deputado João Semedo (BE), relacionada com práticas discriminatórias a uma mulher homossexual nos serviços de sangue. A exclusão admitida pela tutela foi reforçada pelo presidente do Instituto Português do Sangue (IPS). Gabriel Olim referia que "a prevalência de infecção VIH/sida é maior em homens que têm sexo com homens".
Machado Caetano recorda a definição de grupos de risco caiu por terra há cerca de duas décadas, porque "a probabilidade de uma pessoa estar infectada depende de comportamentos, e não do facto de estar inserida num determinado grupo".
As afirmações proferidas nos últimos dias, além de discriminatórias, "mostram ignorância e são lamentáveis. Um homossexual que se proteja tem tantas possibilidades de estar infectado como um heterossexual que faça o mesmo. E há muitos casais que têm mais cuidado do que outros heterossexuais", sublinha.
Perante estas afirmações, que o levam a considerar que o presidente do IPS "não está em condições adequadas para continuar a exercer", refere que estas pessoas só vão ter "uma espécie de convite para omitirem a orientação".
No acto de doação, os interessados têm de preencher um inquérito e ser sujeitos a uma entrevista, em que lhes é perguntado se tiveram ou não relações com pessoas do mesmo sexo, se mudou de parceiro nos últimos seis meses e se teve relações de risco, ou seja, desprotegidas. A lei (ver caixa) exclui definitivamente da dádiva indivíduos "cujo comportamento sexual os coloque em grande risco de contrair doenças infecciosas graves susceptíveis de serem transmitidas pelo sangue".
No Estado Novo podia-se ser homossexual, mas não se podia dizer. Texto São José Almeida
Sem dúvida um sinal dos tempos que correm, de afirmação, rejuvenescimento e desenvolvimento do movimento LGBT em Portugal, é o excelente artigo de São José Almeida sobre as vivências homossexuais e o Estado Novo saído no jornal Público desta semana, no dia seguinte à Marcha do Orgulho LGBT do Porto. Sinal dos tempos, porque pela primeira vez com esta profundidade, uma jornalista, um jornal de referência, se debruça sobre uma história que tem sido sistematicamente oculta, apenas por omissão, por ocultação (como quando se abordam os internamentos psiquiátricos de homossexuais e se descobre que os seus registos de entrada nunca referiam o motivo do internamento), ou mesmo através da destruição e desaparecimento de processos, documentos e registos históricos, intencional, como bem documentou a jornalista. Sinal dos tempos, porque até agora só o activismo LGBT o tinha feito e se tinha preocupado com começar a reunir informação, testemunhos (enquanto é tempo e as pessoas estão entre nós), documentos, pistas, um esforço que em grande parte preparou e reverteu para o trabalho de São José Almeida, que conta aliás com testemunhos de activistas, como Fernando Cascais, que têm sistematizado este estudo essencial à memória colectiva de uma comunidade cuja história foi roubada. Sinal dos tempos, também, porque a nossa história pode ter-nos sido roubada, mas a memória ainda a temos, e estamos a tempo de escrever este outro lado dos acontecimentos históricos que os historiadores do fascismo e do pós-25 de Abril escolheram maioritariamente ignorar. Sinal dos tempos, pela quantidade inédita de precursores e precursoras do movimento LGBT, bem como de testemunhos de pessoas que viveram aqueles tempos, que finalmente dá a voz, e não apenas para os arquivos do activismo, mas também para o grande público. São José Almeida continua e desenvolve um trabalho de investigação que reconhece a população LGBT e a sua perseguição estatuto de sujeitos históricos. E nesta recuperação da nossa memória, deixámos de estar sozinhos.
Mil pessoas nas ruas do Porto pela igualdade de direitos
Jornal Público 12 Julho 2009 "Marcha Mil pessoas nas ruas do Porto pela igualdade de direitos dos homossexuais
12.07.2009 A exuberância é a imagem de marca das marchas do orgulho Lésbico, Gay, Bissexual e Transgénero (LGBT), como aquela que se realizou ontem no Porto. Mas está longe de identificar a maioria dos que se manifestam pela igualdade de direitos de quem tem uma orientação sexual que foge à norma. De calças de ganga e T-shirts, a maior parte das centenas de participantes reivindicou o casamento e a adopção pelos homossexuais. "Casamento e adopção, igualdade sem excepção", lia-se numa faixa do Bloco de Esquerda, um entre dezena e meia de organismos que apoiaram a 4.ª Marcha Orgulho LGBT no Porto, a mais participada de sempre. O subcomissário Mário Moreira, da PSP, contabilizava ontem cerca de mil participantes. "É fácil controlar manifestações como estas. Houve uma auto-organização, por isso, quase não é necessária a nossa intervenção", explicou. Ao som de música e de frases de ordem, a manifestação correu pacífica entre a Praça da República e a Praça General Humberto Delgado. Acima de tudo, todos aceitam a diferença. Por isso, um homem com um vestido de alças cor-de-laranja e uma peruca azul que lança beijos de cima de um camião não choca quem desfila. Mas nem todos exibem assim a diferença. Duas jovens de 16 anos marcham com a cara tapada por uma máscara. Uma explica que são gémeas e assumiram a sua homossexualidade aos 12 anos, mas ainda não contaram aos pais. "É o medo", justifica. A grande conversa, conta, está marcada para hoje [ontem] e a jovem acredita que eles vão reagir bem. O filho de Dulce Santos, 45 anos, já passou por isso. E a mãe garante que correu bem. Ao pescoço traz um cartaz a dizer: "Tu não sabes, mas eu sou mãe de um homossexual." Veio de uma aldeia perto de Aveiro para participar pela primeira vez nesta marcha. "Vim porque acho que os homossexuais devem ter direitos iguais a qualquer outro ser humano." M.O.
MOVIMENTO LGBTM - Lésbicas, Gays, bi e Trans MONOGÂMICOS?
Sérgio Vitorino
À beira de mais uma Marcha do Orgulho LGBT do Porto, eis que se repete, nos meandros do associativismo LGBT local, uma discussão já conhecida do ano passado.
A rede ex aequo, associação de jovens para jovens lgbt, uma das peças-chave do movimento LGBT em Portugal e com um excelente trabalho de âmbito nacional ao nível dos processos de socialização, auto-aceitação e saída do armário de jovens gays, lésbicas, bisexuais e trans, põe em causa o seu apoio e participação na Marcha, em colisão com a introdução do termo “poliamor” nas linhas do manifesto do evento.
A objecção não é alegada pela primeira vez. No ano passado, foi o pretexto para uma retirada de apoio à Marcha e sua não-convocação pela referida associação, e mesmo para protestos que seriam ridículos não fossem discriminatórios, na própria Marcha, como o do jovem que desfilava com um cartaz a dizer “sou monogâmico”. Parabéns, bom para ti.
O termo da discórdia surge contextualizado: o Manifesto fala de respeito pela diversidade familiar e de modelos relacionais e amorosos, lembrando, porque é verdade, que nem todos os modelos amorosos existentes são monogâmicos ao incluir a referência ao “poliamor”. E esta não surge do nada: a Marcha do Orgulho LGBT do Porto (MOP) tem como um dos seus colectivos fundadores e presentes desde a primeira hora, um colectivo “poliamoroso” português, que tem recentemente dado passos de visibilidade e debate público da temática da “não-monogamia responsável”. A MOP é, aliás, apenas um exemplo do grande envolvimento e da solidariedade que este colectivo veio a assumir para com as acções e causas do movimento LGBT nos últimos anos, sem deixar naturalmente de fazer um percurso público próprio na sua temática particular. Mas não é todos os dias que um colectivo que inclui (também) tantas pessoas heterossexuais abraça tão solidariamente as causas lgbt.
Mas o conflito entre os colectivos organizadores da MOP é infelizmente apenas a ponta de um iceberg, já que a posição da rede ex aequo não é isolada nem inédita, e assim uma atitude que poderia ser apenas fruto de uma profunda falta de debate político - e de compreensão da natureza do próprio movimento LGBT – torna-se num debate, mais preocupante mas naturalmente necessário e com vários pontos de vista diferentes, sobre a própria concepção que temos do movimento social em que nos inserimos. Que existam diferentes concepções de movimento não me parece dramático. Parece-me mesmo desejável e enriquecedor. Mas que se tenha o debate, em vez de se tentar silenciá-lo. E portanto, com todo o respeito pelos vários intervenientes, quero clarificar a minha posição, que é também a do movimento Panteras Rosa.
Os argumentos utilizados pela rede ex aequo no debate no Porto a que eu tive acesso são relativamente infantis e facilmente questionáveis, mas merecem alguma atenção pedagógica recuada:
- O argumento de que o “poliamor” não é um tema LGBT merece duas contra-referências: a do grande envolvimento do movimento LGBT (bem sei que ex aequo foi das poucas associações a não tomar uma posição pública) no referendo que despenalizou o aborto; e a do combate ao racismo, presente no mesmo Manifesto sem gerar – ainda bem – oposição.
É evidente que “tema LGBT” pode ser qualquer tema no qual decidam intervir pessoas LGBT organizadas como tal. Mais é ainda mais evidente que todo e qualquer tema relacionado com a liberdade sexual e a não-imposição de modelos relacionais únicos está directamente ligado e influencia o avanço dos temas estritos de direitos LGBT. Mais evidente ainda é que querer combater a homofobia dentro de uma bolha isolada das restantes discriminações sociais é irrealista e irresponsável. Isto parece consensual quanto à discriminação das mulheres ou ao racismo, mas não quanto à discriminação dos modelos amorosos que fogem à norma única imposta da monogamia, que detém visibilidade social quase exclusiva, tal como há uns anos mantinha a heterossexualidade face a outras formas de amar.
Não deixa de ser curiosa, aliás, a semelhança dos argumentos invocados com alguns que eram invocados para esconder a homossexualidade como tema público. Neste contexto, a afirmação individual do manifestante que no ano passado exibia o dizer “eu sou monogâmico”, equivale a ir à Marcha do Orgulho LGBT fazer a afirmação ostensiva “eu sou heterossexual” para com isso confrontar uma minoria social (neste caso a minoria que vive, sob tabú e discriminação, modelos de relacionamento amoroso não-monogâmicos) – a afirmação de pertença a um modelo dominante e culturalmente imposto como único como reacção à pretensão de visibilidade – que outra coisa não se pede – de “outras formas de amar”. Como é que a diversidade de formas de amar não é um tema LGBT, espero ainda que me expliquem.
- O argumento de pânico de que se a palavra “poliamor” vier no Manifesto, toda a cobertura mediática da Marcha se centrará nele. Ora, do que se viu no ano passado, a única visibilidade particular que o tema teve na cobertura mediática das Marchas foi causada pela sua exclusão da organização da Marcha de Lisboa por veto de uma outra associação. Já lá iremos.
- Outro argumento de pânico decorrente, o de que a presença do poliamor na Marcha do Orgulho reforça o estereótipo heterossexista da “promiscuidade” das pessoas LGBT. Este é um argumento mais grave, não só porque reflecte alguma homofobia internalizada, mas também porque remonta aos argumentos defensivos da década passada e os repete como se o movimento e o País não tivessem de todo avançado. Ora, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Em primeiro lugar, é vital entender que não estamos já na fase de argumentos hiper-defensivos e auto-justificativos, em que era preciso explicar a uma sociedade tão homofóbica que o tema lgbt era um tabu público, que os homossexuais não eram uns predadores sexuais viciados em sexo.
Hoje, com 15 anos de movimento social LGBT, exigimos direitos porque somos cidadãos, mesmo aqueles/as que possam ser considerados “promíscuos/as” – eu considero-me, com prazer. O País felizmente começa a ser outro: é público e sabido, por exemplo, que 40 por cento dos homens heterossexuais portugueses recorrem a sexo pago; que as mulheres heterossexuais casadas são dos maiores grupos de risco de infecção pelo VIH; a homossexualidade não é um papão escondido cujas vivências continuem ocultas, mas pelo contrário, ganhou visibilidade social nas suas diversas expressões… já não vivemos um tempo para afirmações sobre a nossa não-promiscuidade.
Vivemos, sim, um momento afirmativo de um movimento lgbt que não deve reproduzir os mesmos argumentos morais de que a população lgbt sempre foi vítima. A nossa promiscuidade não é maior nem menor do que a dos heterossexuais. Somos divers@s como eles/as, também nas nossas vivências sexuais. Alguns de nós – e deles/as – até somos promíscuos/as. Outros/as, somos mais felizes no contexto de uma relação exclusiva. Somos diferentes. E só isso pode ser dito, se reconhemos a diversidade no nosso interior e respeitamos as escolhas individuais de cada pessoa para a sua própria vida. Não cabe a um movimento social fazer os mesmos julgamentos morais sobre as opções sexuais e amorosas de adultos informados que o mesmo movimento passou 15 anos a educar a sociedade para não fazer.
- Não muito longe deste, há ainda o argumento táctico. O de que em ano estratégico de discussão do tema do casamento é necessário moderar discursos para ganhar, e portanto este tipo de parceiros, com temas ainda mal compreendidos pela população, “não é oportuno”. Faz-se assim equivaler inteligência estratégica discursiva a omissão de um tema e de um grupo. As alianças são assim “oportunas” – oportunistas, mesmo – e não solidárias e naturais. Aprofundemos o argumento: em ano de discussão do tema do casamento, nada mais “dá jeito”, na verdade. Por exemplo, o tema da homoparentalidade. Ou o da transexualidade e da identidade de género. Toca a silenciar e a esconder a nossa própria diversidade.
Foi assim que sistematicamente muitos movimentos LGBT em muitos países preteriram – discriminaram, ocultaram - sistematicamente os temas trans, como hoje é reconhecido por exemplo pela federação das associações lgbt espanholas, a FELGT – em nome de vitórias legais eminentes. Nesse sentido, há sempre afunilamento possível de uma agenda que podia ser ampla, tal como há sempre alguém sacrificável, mais uma vez – curioso, não é… - em nome da prioridade aos direitos das maiorias. Ora, não, não há apenas uma forma de fazer movimento, nem todos os caminhos mais rápidos são necessariamente os que alicerçam melhor as conquistas sociais ou o fazem pelo caminho solidário.
Toca-me a mim perguntar: do ponto de vista de um movimento exclusivamente gay e de carácter terrivelmente corporativo, eu até poderia reconhecer alguma inteligência estratégica no silenciar da nossa diversidade temática e identitária. Mas, queremos pertencer a um movimento exclusivamente gay ou que apenas olha para os seus direitos exclusivos sem qualquer abertura aos restantes grupos sociais desfavorecidos? Esconder a nossa própria diversidade em função de uma opção táctica de nos fazermos aceitar não como somos, mas o mais parecidos possível com o que uma sociedade ainda homofóbica gostaria que fossemos – ou seja, pelo menos culturalmente e comportamentalmente, hetero – não é a minha ideia de inteligência táctica. Posso respeitá-la como opção pessoal de vida, não posso deixar de a contestar quando surge como discurso colectivo.
A hipocrisia e a discriminação interna de todos os comportamentos não (hetero)normativos – da mesma forma que hoje os gays “masculinos”, whatever that is, discriminam discursivamente as “bixas” com base nos mesmos valores de masculinidade que sempre foram arma contra a homossexualidade e contra as mulheres, eis o que se ganha dessa forma – por oposição a respeito social, que se ganha quando somos verdadeiros connosco próprios e nos apresentamos na nossa diversidade e realidade, com respeito pelos outros.
Ao contrário, parte do movimento parece optar por uma “limpeza de imagem” que equivale a “limpar” expressões do próprio movimento e da comunidade (já agora, a participação massiva de pessoas lgbt no grupo poliamor em causa é uma expressão do movimento LGBT). A gravidade desta opção está clara no reforço recente dos argumentos anti-“folclore” a propósito da última Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa, a décima e a maior de sempre, na qual por esse motivo a visibilidade trans ou dragqueen não terá sido tão forte como noutros anos, em benefício de uma maior diversidade. É claro que esse crescimento e essa diversificação são positivos. Mas não o sentimento discriminatório e transfóbico que muitas vezes transparece nas posições de agrado por este facto e que sabemos estar muito desenvolvido entre a própria comunidade LGB: um discurso que é simultaneamente anti-efeminados, contra a presença de trans e drag queens na Marcha, em nome da imagem. Hetero-normativo, o mais possível. Homofóbico.
Poucos grupos sociais oprimidos assumirão tanto como próprio o preconceito que a sociedade que ainda os discrimina reserva às suas manifestações culturais, que sempre ajudaram a construir a consciência que permitiu a socialização entre pessoas lgbt e o nascer do movimento social. Mas também noutros grupos oprimidos vemos, infelizmente, discriminações internas fortíssimas como a que ainda hoje, entre nós, se abate sobre tudo o que perturbe o sacrossanto binarismo de género. Mais triste: a maioria dos gays não tem nem sequer uma pista de porque é que os temas da homofobia e da identidade de género, se bem que distintos, estão tão intimamente ligados. Uma pista, então: aos olhos de uma cultura homofóbica, um gay é um homem? Já agora, definam-me “homem”, e não me venham dizer que é uma pila. Na verdade, antes de mais, é um conjunto de construções culturais machistas.
Não entrarei em argumentos desinformados, como os que comparam o poliamor com poligamia ou “poli-sexo”, sem entender ou diferenciar conceitos radicalmente opostos.
Troquemos, assim, os argumentos que conheci nos fóruns da rede ex aequo pelos que conheci a propósito do veto que a associação ILGA Portugal, parceira do colectivo que integro no evento, tem dedicado à participação formal do colectivo poliamor na organização da Marcha do Orgulho de Lisboa. Desta feita, os argumentos de fundo são consubstanciados no ensaio que Miguel Vale de Almeida (MVA) dedicou no ano passado a uma interpretação errónea daquilo que seriam – no seu entender, as panteras é que não se reconhecem em qualquer das posições que lhes são atribuídas – as ideias e estratégias defendidas pelo movimento Panteras Rosa: um texto intitulado “De vermelho a violeta e vice-versa”.
MVA contesta a ideia de que “a poliamoria seria um tema questionador da hegemonia no campo da política sexual e de género”. Diz o académico e activista: “A poliamoria não é um problema. Porque a poliamoria apresenta-se como uma escolha de estilo de vida, uma opção por determinado tipo de valores nas relações amorosas. Não se apresenta como uma reivindicação política de mudança legislativa ou de direitos. Tal seria verdade se se tratasse de poligamia. Ora, não havendo uma reivindicação poligâmica (…) há, sim, o perigo de uma leitura social mediática – errada, claro, mas não menos perniciosa por isso (…) prejudicando o que alguns (por exemplo, eu) acham prioritário porque mais próximo de ser conseguido”. De novo o papão de que o tema poli vai dominar tudo e todos, e de que a Marcha do orgulho LGBT seja apresentada pela imprensa como uma “Marcha Poli”. E se o tema é complicado, hum… melhor não falar dele. Sobretudo à beira de vitórias imediatas noutros campos.
Permito-me discordar. É evidente que há escolhas estratégicas e momentos de concentração temática evidentes. Mas isso não pode ser pretexto para discriminar temáticas – muito menos para excluir a participação de um colectivo de uma Marcha do Orgulho que se quer cada vez mais socialmente ampla e abrangente.
Nunca fui e não sou de bandeiras únicas, elas têm uma tendência dramática para serem sentidas como um fim de linha, “já está tudo conquistado”. Longe disso. Há 15 anos o tema do casamento era impensável em Portugal. Até o tema da homossexualidade, quanto mais. E se hoje o não é, foi porque a par dos outros temas da nossa agenda múltipla, diversa, rica, ele foi sendo tratado e trabalhado ao longo de anos. Não acredito em temas que andam sozinhos e isolados, mas sim em dinâmicas de temas diversos que se alimentam mutuamente e crescem juntos na busca de uma maioria social cada vez mais esclarecida, independentemente das escolhas tácticas de certos momentos. Elas não justificam o silenciar de parte das nossas identidades e vivências, nem isso é produtivo, pelo contrário.
MVA invoca a política de “gestão do possível”. Mas há muitas “gestões do possível”. O “casamento”, o casamento como tema único, ou muitas outras. Depende do contexto, da análise do contexto, da ambição, de diferentes visões existentes sobre como agir e como conquistar direitos e combater a discriminação. Os caminhos, mais uma vez, são múltiplos. Caso contrário, são parciais e socialmente limitados. De rebater, também, esta noção de que os temas mais complicados “passam pela surra” ou vão maturando no silêncio. O silêncio cala e adia, não matura. E os movimentos sociais democráticos, como eu os concebo, não passam coisas “pela surra”, conquistam maiorias sociais através do quebrar dos silêncios. É o que distingue os grupos de pressão dos movimentos sociais, além da possibilidade de escrutínio democrático.
Mas, prossegue MVA: “deixo de lado, por espúria, a questão de a poliamoria pouco ter de verdadeiramente novo, mesmo no campo da crítica cultural”. Certo, o tema não é novo no universo das sexual politics. Mas, em Portugal?! Como discurso político público? Terei perdido alguma coisa?
E acrescenta: “Do ponto de vista da abertura do possível, da crítica cultural que demonstra existir outras formas de viver, claro que a poliamoria tem valor político. Mas tratando-se de uma escolha ética no campo das relações amorosas nada tem a ver com uma agenda de transformação das condições de cidadania. Muito menos pode servir para alienar que, no usufruto do direito a escolher, queira seguir outros modelos relacionais”.
MVA devolve-nos, assim, ao cartaz “eu sou monogâmico” na MOP do ano passado. É um pouco como na discussão eterna entre o movimento lgbt e o argumento homofóbico de que os homossexuais são uns exibicionistas porque os heterossexuais não andam aí a fazer marchas, festivais de cinema hetero ou a afirmar publicamente a sua orientação sexual. No fundo, fazer movimento lgbt seria “discriminar os hetero”.
O que costumamos responder a este argumento, normalmente? Que os hetero não precisam de se afirmar, nós é que passamos tod@s por heteros se não nos afirmamos não-heteros, porque a nossa orientação sexual é discriminada, e é-o em benefício de uma suposta superioridade da heterossexualidade.
Reaplique-se o argumento: a visibilidade de um grupo poliamoroso e a revindicação, que MVA reconhece como válida, de direito à visibilidade de modelos relacionais que são discriminados e invizibilizados em nome de uma suposta universalidade da monogamia, seria uma alienação das pessoas com uma escolha amorosa monogâmica… acho que voltei a perder alguma coisa… a visibilidade de uns é apontada como atentado à visibilidade dos outros, e por isso defende-se a continuação da ocultação dessas realidades minoritárias. Pior… reconhecemos o direito à visibilidade da diversidade, mas somos os próprios agentes da sua invizibilização enquanto defendemos que “o movimento nunca deve fazer juízos de valor sobre as escolhas individuais das pessoas LGBT concretas”. Pois… mas eu defendo e pratico. Os meus juízos de valor são naturalmente apenas sobre discursos e práticas políticas.
Ora, no plano do discurso político, quando é o Estado a definir coisas como parentalidade (mono/ casal/ múltipla), adopção singular/ conjunta, inseminação artificial e acesso a ela, propriedade privada e formas de propriedade conjunta, hereditariedade da propriedade, etc, , etc, etc, para mais baseado sobre uma falsidade - a da universalidade absoluta da existência única de relações amorosas monogâmicas - é duvidoso que uma opção ética deste nível não se enquadre “(n)uma agenda de transformação das condições de cidadania. Inscreve-se, pelo menos, numa agenda de transformação das condições de didadania de todas as pessoas que têm outro tipo de relações e as vêem discriminadas. Já para não falar numa agenda ampla pelo reconhecimento dos direitos sexuais e do fim das imposições morais medievais que limitam as escolhas das pessoas, o tal juízo de valor.
MVA ignora que a poliamoria é um projecto político, pela simples razão que se coloca na esfera de relações reguladas pelo Estado. O que basta para ser um projecto político, nem sendo necessária qualquer crítica cultural da exclusividade relacional. Trata-se de regular e reconhecer – legitimar socialmente, e eventualmente até proteger, não é esse o principal argumento para a luta pelo alargar do acesso ao casamento civil, o valor simbólico? – relações entre indivíduos, tal como faz o casamento.
“Muito menos pode servir para alienar que, no usufruto do direito a escolher, queira seguir outros modelos relacionais” (MVA).
De acordo. Mas não existindo a opção legal de escolher de forma reconhecida a poliamoria, aliena-se quem a escolher. O caminho a seguir em termos do reconhecimento da real diversidade familiar na sociedade não é o “ou, ou”, mas o “e”…
Diz MVA noutro trecho do mesmo ensaio: “A sociedade está organizada e tem determinado tipo de privilégios, tem determinado tipo de regalias e de medidas fiscais no sentido de promover a família”. Corrijamos: no sentido de promover as uniões heterossexuais. E monogâmicas, já agora.
Activistas LGBT dão-se, portanto, ao luxo de olhar para o lado, para um colectivo que vem falar de uma discriminação ainda muito pouco - ou nada - visibilizada e debatida em Portugal, e de afirmar categoricamente, sem sequer tentar perceber porque é que estas pessoas se afirmam enormemente discriminadas na sociedade: “vocês não são discriminados, não queremos confundir-nos convosco”.
Pois eu quero, e como activista do movimento LGBT, e mais quero quanto esta temática se veja discriminada por grupos que existem para combater a discriminação e promover os direitos LGBT (os da parte monogâmica da população LGBT, precisemos). Quero mistura, sim, com os grupos poliamor, com eventuais associativismos de trabalhadores/as sexuais, com os movimentos feministas e todos e todas aqueles/as que abrirem portas e brechas no preconceito e no pensamento único discriminatório em torno da diversidade e liberdade sexual e amorosa em Portugal. Porque isso é reconhecer os aliados naturais e companheiros/as de percurso de qualquer movimento LGBT. É que os meus aliados naturais não são apenas os/as que combatem as discriminações, são sobretudo aqueles/as que não as combatem reproduzindo novas discriminações. Espero não concluir um dia destes que alguns dos colectivos com que temos trabalhado ao longo de anos afinal pertencem a outro movimento social distinto daquele que ajudamos a construir, ou então concebem este movimento social sem parte das suas partes. Pode ser prático numa visão de facções e luta fracticida, que não é a minha ideia de um movimento social diverso, mas parece-me mais óbvio que se trata apenas de preconceito e sectarismo.