MARCHAR PARA QUÊ E COM QUEM?
Vivemos tempos curiosos, difíceis e de desfecho imprevisível no movimento LGBT em Portugal. Tempos de particular sectarismo, divisão, incomunicação. Desde 2003 que o movimento associativo LGBT não é capaz de manter estruturas nacionais, com o preço evidente da perca de capacidade de debate político, de interpretação do momento político e da mudança social, sem articulação, cada um fechado na utilidade do seu trabalho específico, na sua caixinha, incapaz de abraçar as novas temáticas, discursos e perspectivas, com perda de estratégias comuns mínimas e possibilidade de ampliação da capacidade efectiva de transformação social, ou seja, de obter vitórias expressivas com o máximo impacto social, em suma, de cumprir os objectivos comuns a que nos propomos enquanto movimento, para lá das diferentes convicções e estratégias que fazem a nossa diversidade enquanto movimento social.
Os sintomas são muitos e reveladores: cansaço progressivo de muit@s d@s activistas de primeira geração, aqueles/as que nos últimos 10-15 anos construíram a visibilidade e a relevância social e política que têm hoje as vivências LGBT em Portugal; desaparecimento de colectivos e associações sem real renovação e aparecimento de outros; incapacidade de compreensão e resposta a novas gerações LGBT e não só que cresceram no quadro da visibilidade e da existência do associativismo LGBT e entendem a sua importância como nenhuma geração anterior… mas não se revêem nem nas associações, nem na cultura gay mainstream, nem muitas vezes nas categorias e políticas identitárias que existem; fechamento em políticas corporativas com estagnação da capacidade real e concretizada de abrir espaços de comunicação com outros sectores e movimentos sociais que produzam intervenção comum para lá das declarações de compreensão mútua; tendência para um conservadorismo acrítico dos mecanismos de integração e reprodução do heterossexismo, que desemboca num desejo de “normalização” não-criativa, não-transformadora e portanto derrotista e derrotada à partida no que toca a fazer a pedagogia da não-discriminação numa sociedade ainda essencialmente fóbica, isto para lá de se acreditar numa intervenção mais ou menos institucional, que trabalhe mais a luta pela igualdade ou a luta pelo direito à diferença, porque as várias perspectivas são válidas, necessárias e complementares.
Assim é, sem tirar nem pôr, quando o “sintoma opus gay” que assombrou o movimento durante anos – nós é que somos, tudo o resto terra queimada - se dissemina entre outr@s activistas e colectivos cuja prioridade se torna não tanto o combate à discriminação e a construção de um movimento social, mas a busca da hegemonia, o torpedear do colectivo ao lado, a afirmação de personalidades individuais por sobre o valor do trabalho colectivo.
Assim é quando o trabalho institucional se torna não uma parte do trabalho de pressão, mobilização, consciencialização e luta por direitos sociais, mas antes um pedinchar, um abrir de pernas ao poder do momento e à interferência de interesses partidários – os do poder do momento - num movimento onde só podem caber os seus interesses próprios.
Assim é quando a luta pelo reconhecimento de direitos formais como o alargamento do direito ao casamento civil ou pelo reconhecimento da adopção e homoparentalidade se faz mais apresentando a população LGBT como cópia do ideal (não espelhado sequer na realidade heterossexual) conservador do casal hetero – “nós até somos como vocês, casais bem-comportadinhos, até nem somos promíscuos, somos muito, muito normaizinhos”, como se a bitola da normalidade em Portugal, neste campo, não fosse a heterossexualidade – do que pela afirmação da realidade que é a diversidade familiar e relacional que hoje temos, homos, heteros e todos os outros que já não se inserem nestas caixas artificialmente opostas.
Assim é quando o movimento se centra nas expressões masculinas, urbanas e de classe média das vivências homossexuais que puderam sair à luz do dia, e de forma classista desiste da maioria oprimida, aquela que não cabe no “glamour” da cultura gay mainstream nem tem dinheiro para aceder a um comércio rosa sem responsabilidade social nem consciência nem solidariedade com o movimento associativo (salvo raras e honrosas excepções).
Assim é, quando um movimento que celebra o Dia Mundial Contra a Homofobia a 17 de Maio para relembrar a data em que a homossexualidade foi retirada da lista de doenças mentais, tarda em abraçar plenamente a luta pelo reconhecimento dos direitos das pessoas trans, e se recusa a compreender a luta das pessoas transexuais para que a sua diferença de género deixe de ser considerada, com os mesmos argumentos que faziam do homossexual um doente, uma doença mental.
Assim é quando um movimento se esgota meramente em políticas identitárias e corporativas típicas dos anos 90, e não entende que o movimento a nível mundial se diz cada vez mais QUEER e transborda para camadas que antes se diziam hetero, porque entende as identidades LGBT como transitórias e de resistência à discriminação e não como um fim em si, porque percebe que as fronteiras são fluidas e as vivências heterogéneas, porque cada vez mais se sabe que é falso que as nossas potencialidades e identidades se esgotem nos binarismos homo-hetero ou homem-mulher, e que a realidade sexual e de género, humana ou individual, é muito mais diversa, complexa, mutante, mutável.
Assim é quando um movimento que em 2003 apoiava massivamente uma greve geral convocada pela CGTP - por entender que os atentados aos direitos gerais da população, portuguesa ou imigrante, em termos de trabalho, segurança social ou direito a educação e à saúde são, em primeiro lugar, atentados específicos contra as minorias já em desvantagem social, que são sempre as primeira a sofrer os embates das políticas sociais e seus bodes expiatórios, logo são também “temas LGBT” – tem hoje associações que se recusam a participar numa marcha LGBT que é de tod@s com o argumento da referência ao tema “poliamor”, em função da presença de um colectivo dedicado ao tema que esteve entre os grupos fundadores da mesma. Não percebendo que “tema lgbt” é qualquer tema que ponha em causa a hegemonia e exclusividade dos modelos amorosos e relacionais dominantes – heterossexualidade, dominância masculina, monogamia… -, não entendendo que o movimento LGBT em Portugal só tem futuro se souber abrir-se e sair de si mesmo e das políticas exclusivamente auto-centradas, relacionando discriminações que funcionam aliadas, procurando alianças com quem abre novos espaços de comunicação noutros sectores, construindo, a par de uma consciência LGBT, movimentos mais amplos pela liberdade sexual, pela educação sexual, pelo questionamento dos modelos únicos, pelo fim da discriminação das mulheres, pelo fim das outras discriminações (como o racismo, também referido no mesmo manifesto, mas esse já será considerado um tema lgbt? Ao menos isso, mas não se entende a dupla bitola) e da injustiça social em geral.
Assim é quando sectores amplos do movimento LGBT não entendem a necessidade de estabelecer pontes, sobretudo com quem voluntariamente, a partir de outros temas, se aproxima solidariamente da causa lgbt; não compreendem que a luta pelos direitos LGBT não pode ser desligada da pedagogia pela liberdade sexual, pelos direitos sexuais em geral, do feminismo, das populações não-brancas que se organizam contra o racismo e as leis xenófobas anti-imigrantes. Fazem como fazia o sindicalismo há alguns anos, que encarava “os trabalhadores” como seres monolíticos que apenas trabalhavam e não via por detrás dessa identidade monocromática homens e mulheres, hetero e homo, portugueses e imigrantes, ou seja diversidade. Seremos nós, hoje, a olhar para a população LGBT e a resumi-la à sua orientação sexual ou identidade de género? Estaremos então, realmente, a ver as pessoas para quem trabalhamos, e a reconhecer a sua realidade concreta? Assim, não.
Um movimento que continua a falar exclusivamente para os mesmos actores LGBT de há 10 anos, sem perceber que deve hoje mais do que nunca gerir a contradição entre fazer comunicação identitária junto dessas populações, ainda maioritariamente no armário e na cultura da lesbigaytransfobia internalizada dominada pelo gay “normal, masculino e discreto”, e simultaneamente saber abrir-se ao discurso de novas gerações que procuram hoje nas suas vidas transformar a (má) vivência individual, social e política da sexualidade mas já não se identificam com o associativismo como o conhecemos, nem com as caixinhas ou as velhas culturas instituídas de gay, lésbica ou mesmo bisexual; um movimento que não entende que terminou a fase primogénita de visibilização social que foram estes 10-15 anos, e que o que aí vem agora, para lá do reconhecimento legal de alguns direitos e fim de algumas discriminações formais, é o maior embate lesbigaytransfóbico que já viveu a sociedade portuguesa, uma contra-reacção conservadora aos anos de conquista dessa visibilidade, para mais favorecida pelo contexto nacional de grave crise social e económica; um movimento que confunde estes anos de construção inicial com a ideia falsa de que as mais duras expressões da lesbigaytransfobia foram já vencidas em Portugal – como se não fosse apenas agora, que SOMOS realidade social inegável que estas forças sentem a necessidade inteira de exprimir e organizar socialmente e politicamente o seu preconceito e até moldar as nossas incontornáveis vidas aos mesmos modelos que sempre nos oprimiram - é um movimento que não aprendeu com a história, que quer saltar etapas incontornáveis sem nelas meter o pé, que continua a não chegar à esmagadora maioria do seu público-alvo mas não procura os meios para essa comunicação, e que fundamentalmente não está nem quer estar preparado para esta nova fase que se avizinha. Com “mortos e feridos”, em 10-15 anos pusemos cá fora as vivências LGBT. E sei que hoje não estamos preparados/as para cuidar dos mortos e feridos que isso está para provocar.
Falo então de uma crise de crescimento, de uma transição dolorosa, e não da morte de um movimento ou de uma fatalidade.
Derrotismo, não é reconhecer e tentar entender estas mudanças e adaptar a elas a nossa intervenção. Derrotismo, é pensar que podemos evoluir sem repensar continuamente, e achar que a esperança de amanhã se constrói com as formas de pensar e os conceitos de há 10 anos, dirigindo-nos às pessoas de há dez anos como se fosse o mesmo o público que hoje nos observa, ou criando diferenciações discriminatórias e favorecendo privilegiados dentro da própria comunidade, sem perceber que dentro de qualquer grupo excluído há sempre os fracos dos fracos, os mais excluídos do que outros, os excluídos pelos próprios excluídos. É isto a discriminação: não mero preconceito, mas a reinvenção permanente de relações de poder e opressão reproduzidas ao mais ínfimo das relações humanas. E é isso que faz da lesbigaytransfobia um sistema político, mesmo que sem Estado ou aparelho repressivo próprio. Para que precisaria dele, se lhe bastam as nossas cabeças?
Não, não falo de fim, mas de reinício ou continuação. Mas falo de transição, e ela dói porque tem de doer. Novas identidades sexuais, mais fluidas e novas formas de encarar e viver as identidades, as novas e as já instituídas. Novas expressões associativas. Expressões autónomas e diversas de movimento lésbico, de movimento bi, de gays e lésbicas das comunidades imigrantes, de estudantes pela educação sexual, expressões renovadas e não fóbicas do movimento feminista… de outras vertantes da luta por uma sexualidade responsável, sem tabus, vivida saudavelmente como parte da vida. Sangue novo, e não falo de idade necessariamente quando digo “novo”. Tudo isso aí vem, em parte já aí está, e felizmente nem sempre as “velhas” estruturas deixaram de acompanhar a novidade. Mas maioritariamente não está a ser assim. Esperemos, sem esperar sentad@s, que tudo isto aí venha, e esperemos saber contribuir para isso e fazer parte dessa transformação. Nada disso é porém possível sem capacidade de debate comum, no contexto do sectarismo básico e auto-afirmativo cego, sem juntar forças naquilo em que podemos estar de acordo, para lá dos preconceitos e das divergências políticas e estratégicas que só nos enriquecem e melhoram argumentos, sem capacidade de abrir os olhos perante novos temas e novas ideias, mesmo que criticamente (há outra forma?), sem pelo menos a capacidade de saber ouvir e de questionar tudo aquilo que à nossa volta se está a transformar mais depressa do que alguma vez prevemos.
Não, o associativismo LGBT já não é um exclusivo da sua geração original; as suas novas gerações não vão limitar-se ao quadro discursivo, identitário e de pensamento das gerações que as antecederam; quem o faz, está a escolher ficar para lá ou para cá do claro período de transição que vivemos; e dramático seria apenas se esta evolução não estivesse já em curso independentemente de quem não a compreende e se prepara, portanto, para ficar pelo caminho. Não quero ser dono da razão, mas também não me retiro a legitimidade de pensar ou de falar em nome próprio. Escrevo para debater e ser questionado por quem ainda é capaz de respeitar as divergências de opiniões sem as encostar e categorizar imediatamente e eternamente como “radicais”, “moderadas”, “derrotistas” ou “ultrapassadas”, logo, como nem valendo a pena discutir ou “trabalhar com”. Dou o meu contributo, como sempre dei, o mesmo que hoje questiono para dar conforme as exigências da realidade e as minhas convicções próprias.
Sejam as marchas lgbt, então, a expressão destas diversidades, de uma vontade de luta transformadora de tantos aspectos negativos em Portugal, uma proposta de intervenção não-corporativa e não exclusivamente LGBT, mas de tod@s @s que lutam pela diversidade social, sexual, política, contra as forças medievais que ainda regem a sociedade portuguesa e por direitos para tod@s. Porque sim, na diferença e na divergência, dentro e fora do movimento lgbt, a união faz mesmo a força, e o sectarismo bacoco ou os orgulhos pessoais postos acima do interesse da intervenção social fazem a fraqueza e a irresponsabilidade. Não sejam os próprios movimentos LGBT a fechar-se em si, a excluir novos actores, a encerrarem-se na sua temática com prejuízo de um combate eficaz à lesbigaytransfobia, porque ela não existe isolada nem se combate isoladamente.
Mais do que nunca:
Dia 28 de JUNHO, às 16h, no Príncipe Real em Lisboa.
Dia 12 de JULHO, 15h, na Praça da República no Porto
sem necessidade de rótulos, sem exclusões, celebrando a diversidade, procurando e não recusando todas as alianças de que necessitamos na sociedade portuguesa, sem vergonha – porque negar a luta pelos direitos lgbt como parte das lutas pelos direitos sexuais não é outra coisa…
vamos marchar pelo orgulho em estarmos cá fora e de cabeça levantada apesar da discriminação, vamos dar a cara colectivamente por todos e todas @s que não podem dá-la, e para que ninguém no futuro seja forçado a dar a cara para que os direitos humanos mais básicos sejam reconhecidos, valorizados e respeitados. Porque é isso a Marcha, e é desse Orgulho que falamos. Saibamos com modéstia honrá-lo melhor do que andamos a fazer, e fazer justiça à nossa própria história e esforço activista e aos frutos que ele já deu.
21 de Junho de 2008
Sérgio Vitorino
Activista LGBT
Etiquetas: História, transfobia
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