As Panteras no cortejo alternativo no Europride 2007
"Mãos ao alto, a Chueca é um assalto!": é reveladora a palavra de ordem que mais sucesso fez ao longo das muitas horas em que o Bloque Alternativo - rede que congrega vários colectivos LGBT alternativos de Madrid - desfilou no Europride este final de semana. Sob o lema "Orgulho é protesto, a quem é que isso incomoda?", o desfile crítico, mas integrado no cortejo do Europride, começou por juntar 300 activistas, entre os quais um grupo de Panteras Rosa de Lisboa e do Porto, e foi engrossando ao longo do dia, pela simpatia despertada junto do público que assistia, a ponto de ter terminado com mais de 1500 pessoas e constituído um dos maiores, senão o maior, cortejo na manifestação do Europride.
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De facto, as palavras de ordem escolhidas pelos nossos parceiros madrilenos parecem ter sido escolhidas para ir de encontro aos sentimentos de largas camadas do público: "fufas e maricas, também queremos casas"; "maricas e fufas também são classe operária"; "prazer anal contra o capital, prazer clitoriano contra o vaticano", e outros dizeres POLÍTICOS arrancaram uma recepção entusiástica da parte de milhares de pessoas, demonstrando bem as contradições actuais do processo de "normalização" da causa LGBT no Estado Espanhol, e um mal-estar evidente com a extrema comercialização e despolitização crescentes do movimento, sobretudo após os recentes - e importantes - avanços legais ali conquistados (casamento, adopção, Lei de Identidade de Género), que representam de alguma forma - e erroneamente - um "fim de linha" e um adormecimento para o movimento mais institucionalizado, e muito colonizado pelo PSOE, que se encontra no governo, como se a discriminação tivesse terminado com a igualdade formal reconhecida na Lei e não houvesse mais motivos para lutar, e como se os avanços sociais conseguidos em grande parte através do poder e da influência do "comércio rosa" não fossem acessíveis apenas a uma minoria da comunidade com poder económico para o consumo.
Eurocirco?
O Europride em si é o exemplo máximo deste estado de coisas: com quase nada de política ou reivindicação, parece uma ode ao dinheiro e ao consumo e à confusão instalada entre emancipação e capacidade de consumir, uma catedral de corpos masculinos (eles rendem sempre mais dinheiro do que elas), todos iguais, musculados pelos mesmos ginásios, como se talhados a plástico e produtos de beleza para parecerem qualquer coisa como "verdadeiros gays", com o comércio a definir identidades em vez das pessoas, como se o "gay" se definisse pelo que veste e consome. Enormes camiões TIR de todo o tipo de marcas e projectos comerciais, todo o tipo de multinacionais vestidas de arco-írios e transfiguradas em "amigas" dos gays, o camião do google a perguntar se já comprámos o nosso não-sei-o-quê, a Coca-cola a dizer-nos que os gays é aquilo que bebem (ou então não são gays?), numa espécie de mundo rosa em que supostamente já não há discriminação, mas tudo se compra e vende (até o direito a ser-se gay) e se conclui que quem não compra não ganhou ainda o direito à não-discriminação. Um circo? Foi a melhor palavra que nos ocorreu: um grande, grande circo.
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E no entanto, nas ruas de Madrid, fora do conforto "conquistado a consumo" no bairro Chueca, a homofobia e a transfobia a nú, como sempre esteve. As iniciativas da Bloque Alternativo, centradas nos bairros populares de Madrid - passeatas, debates públicos, comidas populares em praças centrais... - a despertarem tanta simpatia como as reacções fóbicas e agressivas que talvez esperássemos encontrar em Lisboa, mas já não em Madrid. Ah não? Pois, sim. Longe do negócio e das multinacionais, longe do euro rosa e entre quem não o tem (rosa ou de outra cor), tudo na mesma, e o conflito social que nos opõe à LesBiGayTransfobia absolutamente reconhecível e às claras, como todos os dias o sentimos no nosso próprio País. E nos bairros pobres, entre quem tem pouco, a comunidade LGBT vista injustamente como privilegiada e rica, pois essa é a imagem que se quer criar.
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"Orgullo Europeo, Orgullo pesetero!"
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Daí o interesse despertado pelas organizações do Bloque Alternativo, em relação ao qual reconhecemos um apoio popular que não se sente de igual forma face a um movimento institucional que se construiu apenas com base na influência política e mediática, no poder do comércio, e numa perigosa e comprometida promiscuidade com o poder político (PSOE). No Bloque Alternativo participam, exactamente, entre muit@s jovens, alguns/mas dos/das activistas mais históricos do movimento, herdeiros da "Radical Gay", anos 90, que ao longo de tantos anos foram aqueles que realmente provocaram a mudança social sobre a qual cresceu o recente e até há pouco tempo pouco influente movimento institucional, mas cujo trabalho este movimento institucional reivindica hoje exclusivamente para si. Assim se reescreve a história, e reescreve-se a dinheiro.Os colectivos e activistas do Bloque Alternativo tentam - sem renegar a festa e a celebração - fazer regressar o movimento LGBT em Madrid aos princípios e reivindicações políticas e sociais originais do movimento LGBT e que, para lá do discurso turístico, se comprova que também no Estado Espanhol continuam por conquistar.
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Daí a tomada de posição do nosso cortejo, que não se deixou dispersar no final da manifestação - como pretendiam e tentaram impôr os organizadores - e reapareceu numa espectacular acção directa não-violenta de 300 activistas que simplesmente detiveram a marcha do Europride durante 15 minutos, ao iludirem a polícia e se sentarem e bloquearem a passagem a um dos grandes camiões TIR com um conjunto de faixas onde se lia "os nossos direitos não são um negócio". O camião em causa foi bem escolhido, mas outros poderiam ter sido: este pertencia à empresa "Infinitamente Gay", que patenteou a sigla "Europride" no Estado Espanhol, e à qual têm agora de se pagar direitos se se quiser utilizar a palavra. 
"Orgulho Europeu, orgulho do dinheiro", gritou-se. E com razão, num contexto em que o comércio se substituiu claramente e ilegitimamente ao movimento social, com a permissão de uma elite privilegiada e moderada do próprio movimento.
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Política e Comércio
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Sinal de "normalização", dizem-nos. Sinal, respondemos nós, de ocultação do facto de nesta sociedade, como ela ainda é, não haver espaço para normalização nenhuma, mas apenas para um atenuar estratégico mas não-duradouro da discriminação em função da capacidade de consumo de cada um/a.
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É evidente que ali, como em Portugal, o comércio LGBT (sempre muito mais G que L, B ou T) tem um papel a desempenhar no processo de luta pela libertação LGBT. Que seria de nós sem os nossos bares, espaços de protecção e socialização, e de criação de consciência comunitária, por mais débil que ela seja ainda em Portugal? E porque não haveríamos nós, LGBT, de ter o direito de consumir e produzir bens de consumo que constituam alternativa às referências negativas que sobre nós constrói a sociedade heterossexista? Quem nos dera - e provavelmente está aí um dos caminhos estratégicos para o crescer do movimento LGBT português, das suas marchas e representatividade social - que mais comerciantes e empresários LGBT tivessem consciência da utilidade que poderiam ter se fossem solidários com a causa do movimento social.
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Mas não, para a maioria, ainda hoje (e claro que há boas excepções), a única causa é a do dinheiro. Por isso nos insurgimos, por exemplo, no ano passado, contra a organização de uma Lesboa Party que recusou ter materiais de prevenção lésbicos na sua festa, porque isso representa total falta de solidariedade e de consciência social por parte do negócio, que na maioria das vezes quer lucrar com a comunidade mas não quer contribuir para a sua emancipação. O que não surpreende, aliás, num País tão fóbico em que chega a ser mais fácil encontrar heterossexuais que compreendem e pressentem esta discriminação, do que gays,
lésbicas, bissexuais ou trans que reconheçam a discriminação de que são alvo a todo o momento. "Eu nunca fui discriminado", dizem-nos. E nós rimos, ou choramos, é para onde der, mas indiferentes não podemos ficar, e nesse momento temos consciência do nosso atraso.
Compensam-nos as afinidades que encontrámos com tantos grupos de activistas de Madrid - e de Aragão, Catalunha, País Basco, Galiza, Andaluzia - que não se renderam à total comercialização e despolitização do movimento LGBT que por ali faz mossa funda e que observado de perto desmistifica em grande medida essa "Espanha" que o movimento LGBT tem aqui usado como referência estratégica para tentar - tarefa ingrata - iluminar alguma coisa das cabecinhas envergonhadas dos políticos portugueses.
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De resto, de assinalar o cortejo da ILGA Portugal, que optou por participar no desfile oficial com uma faixa "Portugal zero, Espanha 3", igualmente muito bem recebida pelo público, e ainda bem, por ser mais 1 dos poucos expoentes políticos naquele grande circo a que chamam europride e que mais parece um desfile de multinacionais, um culto bizarro do corpo (masculino) formatado, uma celebração do dinheiro e do consumo, com muito pouca consciência social e política, e já muito pouco de afirmação identitária de um grupo que também ali continua socialmente oprimido. É bom sair de Portugal e ver que não estamos sozinhos, e que tantos e tantas pensam como nós e sentem falta da política e de um movimento social a sério. E é bom sabermos, como também se gritou, que "ainda bem que não somos barbies".
Visto daqui ao lado:
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