Querida Doutora Marta
Marta Crawford – Entrevista à Notícias Sábado, número 14
Jornal de Notícias - 15 de Abril de 2006
"[…] Acabei por fazer o trabalho final [de estágio] sobre transexualismo.
Os seus colegas optaram por temas mais leves?
Sim, mais "light" […]. Escolhi o transexualismo, que era uma coisa mais arriscada."
Querida Doutora Marta:
Escrevo-lhe para lhe agradecer a bondade que revela na imensidão da sua coragem. Sou a Nunette, uma transexual, e questiono-me todos os dias sobre o que seria de mim se a senhora não tivesse lugar assente na praça mediática ou se tivesse desistido do seu estágio. O que a sua entrevista revela é da maior importância: que esteve muito tempo no Brasil, onde aprendeu tão correctamente a dizer transexualismo, que é adepta dos aditivos tabágicos, que alegram o meu Cartier light, e que se alistou na Al-Qaeda, organização que a dotou de enormes competências para lidar com os riscos deste mundo. Pelo facto de tocar piano, competência que também lhe desconhecia antes desta entrevista, sinto-me muito mais compreendida na minha incessante busca pela sensibilidade artística que a nós, transexuais, deve ser imposta. Tal sensibilidade sempre me pareceu a base psicológica fundamental e suficiente para adquirirmos a força e a coragem face aos riscos que a senhora profundamente conhece das nossas vidas. Mais do que conhecê-los, converteu-os um "ismo" e deles fez uma sua causa, pelo que venho convidá-la a planearmos uma acção terrorista. A rua de Gonçalo Cristóvão pode ser um bom local para iniciarmos esta jornada de luta: ali, não seremos sancionadas por fumarmos do meu Cartier, teremos francas probabilidades de nos depararmos com os riscos que lhe nutrem a alma, poderemos gritar ao ponto de, finalmente, merecermos a atenção da comunicação social e mostraremos aos seus comodistas colegas quão pouco valem todas as outras realidades existenciais a que, muito menos corajosamente que a senhora, decidiram dedicar-se. Proponho-lhe ainda que traga consigo os seus filhos, que já são meus de tanto a ouvir falar no amor que lhes tem: o seu quotidiano e recorrentemente verbalizado esforço de educação sexual doméstica pode encontrar o mais fértil dos terrenos se enveredarmos por esta acção. Promete ser a mais didáctica, eficazmente confrontativa, altruísta e plural oportunidade de crescerem e de se tornarem pessoas (tão "light") como nós (para refinar a genial metáfora da nossa estimada Margaridinha Rebelo Pinto).
Não perca a esperança pelas críticas que lhe têm sido tecidas e diga "coisas" , mesmo que "arriscadas" e tão acutilantemente designantes do nosso "transexualismo".
Beijos, Nunette.
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