por Maycon Lopes, em abril 17,
2013
No dia 10 de dezembro de 2012 eu aceitei um desafio. Aliás, assim
falando, soa como se se tratasse de uma atitude bastante corajosa, como
se não houvesse nela um quê qualquer de entreguismo. O que quero dizer é
que seria ingênuo pensar que eu agi de modo puramente voluntarista,
como se também, ou principalmente, eu não tivesse sido impelido a. E,
claro, tenha acatado esse “empurrão” social. É porque haveria também
tanto ou mais coragem no outro pólo, no “desleixo”: deixar-se seguir sem
passar por isso. Mas no fundo eu sabia que – e até agora tem se
confirmado -, tratava-se de um momento-chave: eu me submeteria ao tal
tratamento para, decisivamente, não voltar a incorrer no risco.
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Tudo começou quando… Não. Na verdade o início disso tudo remete à
instauração nas subjetividades gays do risco de contração do HIV. Mas
não discorrerei sobre isso agora, inclusive já o fiz anteriormente, em texto
igualmente auto-etnográfico. Como não implicar-se ao tratar desse tema?
Ou como não debruçar-se sociologicamente na sua própria, e tantas vezes
tortuosa, experiência? Seja como for, nós, antropólogos, pro bem e pro
mal, sempre temos o pretexto de fazer uma etnografia. E foi também com
esse interesse de falar em primeira pessoa, de produzir sobre o meu
estado, que decidi submeter-me à profilaxia. Vou explicar.
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No dia 8 de dezembro, uma noite de sábado, eu fiz o meu sonho de
consumo. Um dos, é claro – haverão sempre aqueles que nunca faremos.
Então você pode imaginar aquele cara, menino do Rio, corpo feito de
areia e mar, que de repente, sabe Deus como, aparece na sua cama. Daí
você me pergunta: “mas você não tinha preservativo?”. Tinha, sim, e
tinha aos montes, sobretudo dessas de posto de saúde que a gente vai
estocando. A epidemiologia pode até confirmar o uso de psicoativos como
preditor de relação sexual desprotegida. Foi na chapa, como se diz por
aí.
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Como tudo o mais só se mede depois do prazer, o meu sufoco começou
ali. Não me venham com essa de que a aids é uma “doença democrática”,
como ouvi certa feita numa apresentação de trabalho acadêmico. Por mais
importante que seja frisarmos que a aids potencialmente atinge a
todos/as, não podemos, por conta disso, obscurecer o fato de que alguns
grupos são mais vulneráveis à infecção pelo HIV. Segundo dados
do Ministério da Saúde, enquanto a taxa de prevalência de HIV para a
população geral entre 15 e 49 anos é de 0,6% (e de 0,8% entre os
homens), esse número sobe para 10,5% quando tratamos da população de HsH
(homens que fazem sexo com homens). Desses dados podemos concluir quão
democrática é a aids.
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Estou apresentando tais resultados pois estes foram preponderantes
para decidir submeter-me à profilaxia, que muito em breve explicarei o
que é. Vale ainda ressaltar o meu conhecimento acerca do risco de
infecção, que, dentre as possíveis práticas, é o maior, no sexo anal
receptivo. Como relato também em trabalho anterior, é comum que, após a
exposição, iniciemos uma série de especulações para pensarmos na
probabilidade, quase nunca efetivamente verificável, do seu parcerio ser
positivo. Acionamos nesse momento uma série de preconceitos e
estereótipos para constatações precárias, os quais prefiro aqui
abster-me de confessar, para preservar não só a mim como a identidade do
jovem com quem estive, que faz muito bem a linha que curte a página
“Clube Hétero” no facebook.
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Quis pontuar apenas as motivações que me levaram aceder ao
tratamento: avaliar o estilo de vida do meu parceiro sexual, mas,
principalmente, pensar a mim e ao meu parceiro como sujeitos vulneráveis
ao contágio de HIV. Em verdade, foi só na noite do dia 8 de dezembro
que ouvi falar pela primeira vez em profilaxia – através de um amigo,
que, assim como eu, se interessa imenso pela temática da aids. Até
então, eu sabia apenas que deveria aguardar os três meses; quando,
diz-se, é possível diagnosticar com mais certeza o HIV num exame de
sangue.
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A profilaxia, que atende pela singela sigla de PEP (Profilaxia
Pós-Exposição), é um tratamento preventivo, que não garante eficácia, e
que deve ser iniciado até 72 horas após a exposição ao vírus. Quanto
antes, melhor (recomenda-se que seja nas duas primeiras horas, ou, ao
menos, nas primeiras 24 horas). Beleza. Agora pesquisa no google
“profilaxia HIV Salvador” e você não terá qualquer informação acerca de
onde pode ser feita. Mas aqui vou te dizer aqui: CEDAP, Hospital das
Clínicas e Hospital Couto Maia. Acontece que o dia seguinte era um
domingo, onde imaginei que o CEDAP estaria fechado. Como não obtive uma
informação que deveria estar disponível on-line, precisei aguardar até a
segunda-feira, embora pudesse (mas no momento não imaginei, até por se
tratar de temática tão marginal) ligar para qualquer unidade de saúde em
busca dessa informação.
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Na verdade a profilaxia já é um tratamento amplamente adotado entre
vítimas de estupro e profissionais de saúde que se acidentam
ocupacionalmente, mas a regulamentação prevê que esta seja
disponibilizada pelo SUS para qualquer pessoa que possa ter se exposto
ao vírus. Desde 2011 ela é oferecida, mas, até o momento – e isso pude
notar quando contava aos amigos a respeito (da novidade) do tratamento
-, quase ninguém sabe da sua existência e aqui questiono a razão do
desinteresse do governo em divulgar um serviço por este oferecido.
Embora alguns profissionais de saúde defendam que as pessoas passariam
então a repetir a profilaxia – o que não é recomendável -, defendo que a
profilaxia possa representar um passo definitivo na prevenção ao HIV.
Eu, por exemplo, que tive terríveis efeitos colaterais com os
medicamentos (muito sono, uma fome absurda, gases, diarreia, etc), acho
muito difícil praticar novamente uma relação sexual desprotegida. Embora
uma semana antes eu tenha realizado o teste rápido (o qual no Brasil,
ao contrário de países como Portugal, ainda não é disponibilizado para
toda a população – o que é um absurdo!) e participado das ações do dia
primeiro de dezembro, dia internacional de combate a aids, precisei,
para definitivamente fechar a minha janela, submeter-me a esse
tratamento.
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Fui atendido no Hospital Couto Maia, e três meses após a conclusão
do tratamento realizei o exame no CEDAP, recebendo o resultado com uma
imensa vontade de gritar ali mesmo: Tô limpaaaa! Julgando que seria
importante gerar dados para o Ministério da Saúde, até para avaliação e
formulação de políticas, liguei para o Hospital Couto Maia, expliquei a
situação: (pois eu deveria ter retornado àquele hospital, onde fui
primeiramente atendido) que fui ao CEDAP, realizei o exame, que deu
negativo, e o que ouço do outro lado da linha é um “Graças a Deus”.
Apenas isso. Em momento nenhum houve interesse de saber o meu nome, a
data ou o número do meu atendimento, para computar o dado e dar qualquer
retorno ao Ministério da Saúde. Quer dizer, aliada à pouca
disponibilização de informação, um total descaso (em parte, mas somente
em parte, também de minha responsabilidade) com a avaliação da eficácia
do tratamento oferecido.
Para além disso, quando estive no CEDAP à procura do tratamento fui
desmotivado pela assistente social a aceder ao mesmo, simplesmente por
desconhecer o estatuto sorológico do meu parceiro, ainda que eu faça
parte de um grupo em que a taxa de prevalência de HIV seja dez vezes
maior que o restante da população – contrariando o protocolo do próprio
Ministério da Saúde, conforme pode ser verificado na tabela abaixo.
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Ainda neste dia, após tentativas fracassadas de falar com o meu
sonho de consumo por telefone, mais tarde foi que resolvi, quase 48
horas depois, incentivado por amigos, a iniciar o sofrido tratamento. Eu
parecia já estar situado numa verdadeira contagem regressiva: “corra,
pois você já perdeu muito tempo”. Embora as pílulas componham o que
ficou conhecido como “o coquetel do dia seguinte”, na verdade é o
coquetel dos dias seguintes, quer dizer, do mês seguinte, porque
consiste em 28 dias, 56 doses, o que equivale a um total de 168
comprimidos maiores que de Tylenol. Uma bomba dentro do organismo. Uma
alegria a cada recipiente que se esvai. Como o título de um ensaio do
escritor, sociólogo e ativista Herbert Daniel, muito embora em condições
históricas e de saúde extremamente divergentes da minha, “o primeiro
AZT a gente nunca esquece”. Enfim, definitivamente, o seu sonho de
consumo não merece um anti-retroviral que seja, enquanto que a nossa
vida é inestimável.
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