20 de Novembro, Dia Internacional
da Memória Trans
Contra a Transfobia, despatologização!
Activistas em todo o mundo assinalam hoje o Dia
Internacional da Memória Trans (TDOR - Transgender Day of Remembrance), que
lembra e homenageia as pessoas trans que perderam as suas vidas devido a crimes
de ódio. De acordo com o projecto Transrespect
vs. Transphobia da rede europeia Transgender Europe, desde 2008 foram
reportados pelo menos 104 assassinatos de pessoas trans apenas na Europa (2 dos
quais em Portugal). A nível mundial, somente entre 1 de Outubro de 2014 e 30 de
Setembro de 2015, foi reportado um total de 271 assassinatos de pessoas trans.
Nesta efeméride, não podemos ser
indiferentes à realização, em Lisboa, do 1º Congresso da associação “JANO - Associação de Apoio a Pessoas com Disforia de
Género”, entidade constituída em torno do corpo clínico que acompanha os
processos de “reatribuição de sexo” e que continua a basear a sua intervenção e
perspectiva na classificação falsa e discriminatória que vê as identidades trans
como pretensa “doença mental”. Sendo evidente que esta classificação
patologizante é mais um factor constitutivo da transfobia social, a escolha do
20 de Novembro para a prossecução pública de tais teses é, no mínimo, triste e
inadequada.
É a vivência da transfobia, e não uma alegada “disforia de género” definida
pela Medicina, aquilo que determina o desconforto, legítimo, de tantas pessoas trans.
É urgente mudar a perspectiva sobre as questões trans do foco médico para o
campo social: não só as transidentidades não são uma doença, como é o grave
problema da transfobia e sua múltiplas discriminações que importa combater.
O foco sobre a medicalização faz
esquecer que vivemos numa sociedade que apaga a nossa própria existência e nos
coloca à margem de um sistema cissexista que não nos deixa viver com dignidade,
a não ser que façamos todos os esforços para parecer cis e voltarmos à
invisibilidade.
O foco sobre a medicalização
coloca todo o poder sobre as nossas vidas nas mãos de médicos autoproclamados
“especialistas”, quando é evidente que as únicas especialistas das suas
identidades e vivências são as pessoas trans.
Não nos permite dar os passos
verdadeiramente necessários para o nosso bem-estar, ao nosso ritmo, mas
obriga-nos a conformarmo-nos à narrativa estreita dos “especialistas” que, a
partir da sua posição de poder, consciente ou inconscientemente, reproduzem
tantas vezes discursos da sociedade transfóbica e cissexista e continuam a
limitar a diversidade de identidades de género não-binárias ao conceito único
de transexualidade.
Esse foco deixa de fora as
pessoas com discriminações acumuladas, como migrantes em situação
indocumentada, as pessoas excluídas do sistema de saúde por outras razões, as
pessoas cujas identidades e expressões de género não encaixam no binarismo
“homem-mulher”.
Não nos permite falar livremente
por nós, por medo de contrariar os preconceitos de alguns especialistas e
perdermos o acesso aos cuidados de saúde de qualidade de que precisamos.
Facilmente se torna uma relação de policiamento, provação e avaliação, mais do
que de um cuidado de saúde que deveria ser uma ferramenta útil.
A reprodução e reforço, mesmo
inconsciente, do sistema de poder médico sobre as nossas decisões quanto aos
nossos próprios corpos levam a casos gritantes como: a coerção durante o
diagnóstico, a desvalorização da nossa palavra, prolongamento irrazoável dos
prazos para emissão de diagnóstico. Tal resulta, em suma, numa infantilização e
inferiorização da pessoa trans e da sua capacidade de decisão, numa
desumanização pela forma como a sua opinião é desconsiderada.
O foco sobre a medicalização cria ainda separações desnecessárias e perigosas
entre as pessoas trans: as auto-definidas transexuais – ou as que, sendo trans,
se encaixam nos critérios do pessoal médico e têm direito a avançar no processo
– e as outras, aquelas que não querem ou não podem entrar nesse processo, mas
são igualmente trans. São pessoas que sofrem discriminações sociais similares
(transfobia) quando se apresentam abertamente como trans, mesmo as que não
queiram alterar o seu corpo parcial ou completamente. Não obstante, as pessoas trans
que sintam necessidade de alterar o seu corpo devem poder fazê-lo livremente e
na medida que entendem, sem que isso alimente a criação de uma separação médica
entre quem tem diagnóstico e quem não tem.
Enquanto o sofrimento das pessoas
trans continuar a ser visto como “doença mental”, e não como fruto da discriminação,
a nossa palavra de pouco valerá na luta que queremos travar contra a
transfobia. É urgente lutar contra a transfobia quotidiana, demasiadas vezes
traduzida em violência, destruição da auto-estima, vitimização, precarização e
na discriminação sistemática que marginaliza as pessoas trans.
Nesse sentido, direitos sociais e
legais não podem, como hoje acontece em Portugal, depender de qualquer tipo de
aval ou processo médico. Ao fazer depender de um diagnóstico médico a
possibilidade de alteração do nome e sexo nos documentos de identificação das
pessoas trans, o Estado lava as mãos da sua responsabilidade na garantia desses
direitos.
Queremos poder mudar o nosso nome e sexo (enquanto este continuar a ser aceite
como uma categoria de identificação) no registo civil e ter acesso às operações
cirúrgicas de que necessitamos através de uma simples declaração de
consentimento informado e sem necessidade de um diagnóstico de “Perturbação de
Identidade de Género” ou “Disforia de Género”. Exigimos as ferramentas legais
para a nossa autodeterminação: para alterarmos o que quisermos no nosso corpo,
quando e como quisermos.
Continuamos a
requerer cuidados de saúde trans-específicos, de qualidade e garantidos pelo
Estado, enquanto deles necessitar qualquer pessoa. Queremos poder escolher viver a nossa transição sem
o actual acompanhamento psicológico obrigatório, independentemente de
reivindicarmos que o Sistema Nacional de Saúde continue a garantir e disponibilizar
aconselhamento psicológico e psiquiátrico da especialidade a todas as pessoas
que dele necessitem e o desejarem.
Para um combate
real à transfobia na sociedade portuguesa, exigimos:
- A revisão da actual “Lei de Identidade de Género”, conforme
os modelos argentino e de Malta, baseados na despatologização e na
autodeterminação;
- Inclusão da Identidade de Género no artigo 13º da
Constituição da República Portuguesa, como motivo pelo qual não se pode ser
discriminado;
- Fim do “sexo” ou “género” como categorias de
identificação civil. No entanto, enquanto estas se mantiverem, exigimos acesso
à mudança de nome e sexo nos documentos de identificação sem necessidade de
diagnóstico médico e através de uma simples declaração de consentimento
informado;
- Cuidados de saúde adequados, gratuitos, de qualidade,
não obrigatórios, sem coerção, com consentimento informado, no respeito dos
Standards of Care da World
Professional Association for Transgender Health (WPATH);
- Políticas activas contra a discriminação e pela
inclusão das pessoas trans, nomeadamente:
- medidas contra a discriminação
na escola, sistema de saúde e demais instituições públicas, ou no mundo
laboral;
- combate ao estigma e
reconhecimento de direitos para as pessoas que praticam trabalho sexual;
- apoio e legalização das pessoas
migrantes indocumentadas;
- Educação para a liberdade de
expressões e identidades de género.
20 de Novembro de 2015
PANTERAS ROSA – Frente de Combate à LesBiGayTransfobia
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Léxico:
Cis: pessoa
cujo género/sexo que lhe foi atribuído à nascença é concordante com a identidade
de género socialmente esperada para si.
Cisnormativo:
exercício de pressão, mesmo que inconsciente, para correspondermos à norma
binária “homem-mulher”, ou seja, sermos cis.
Cissexismo: crença, mesmo que
inconsciente, de que as pessoas cisgénero são inerentemente superiores ou “mais
normais” do que as pessoas trans.